Chico Buarque tempera novo romance com tensões de Brasil sob Bolsonaro

Diferente de seus outros livros, em sua nova obra Chico Buarque relata uma história em 2019

© Reuters

Cultura Literatura 08/11/19 POR Folhapress

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não bastassem os perrengues pessoais, ficou difícil me dedicar a devaneios literários sem ser afetado pelos acontecimentos recentes no nosso país." A frase que figura já na primeira página de "Essa Gente" está numa carta do protagonista, o escritor Manuel Duarte, mas soa como uma confissão do próprio autor, Chico Buarque.

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Ele segue pedindo desculpas por incomodar o seu editor "num momento em que a crise econômica parece não ter arrefecido conforme se esperava" e lamenta as condições do mercado editorial. Termina prometendo um romance que dará grandes alegrias –o que, bem, não se realiza muito na leitura, que carrega a costumeira angústia da literatura de Chico.

Enquanto os seus romances costumam se passar em tempos indefinidos ou num passado mais distante, este Chico Buarque está com os dois pés fincados em 2019.

É tanto o primeiro livro que o autor de 75 anos escreve depois de receber o prêmio Camões em maio, a mais alta distinção a um escritor de língua portuguesa, como é o primeiro a ser publicado sob o governo de Jair Bolsonaro.

Fatos que se interligam na insinuada recusa do presidente em assinar a homenagem, rebatida de pronto por Chico em sua conta no Instagram –"a não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo prêmio Camões".

Enquanto quase todo artista fala quase o tempo todo sobre quase tudo, Chico cultiva um inusual silêncio público. Não dá entrevistas, guarda uma vida privada monástica –com exceção das aparições em comícios a favor da candidatura petista no ano passado, contra a prisão de Lula e o impeachment de Dilma Rousseff.

Mas ainda parece insuficiente, haja vista a sede com que seu séquito de fãs aguarda sorver cada novo álbum e cada novo livro –foram cinco anos desde "O Irmão Alemão"–, um anseio voraz pelas palavras de uma rara figura que concilia popularidade com estatura intelectual.

"Essa Gente" deve agradar essa gente. Os tormentos de Duarte, ainda que não sejam eminentemente políticos, não deixam de espelhar aqueles que acometem a esquerda desde as últimas eleições.

Feita em forma de diário, a obra traz por exemplo, numa entrada marcada de janeiro de 2019, a constatação fria do protagonista de que agora ele poderia, por decreto, ter quatro armas de fogo em casa.Escrito desde outubro do ano passado, momento em que o artista encerrou a turnê do álbum "Caravanas" e a direita passou de trator pelas urnas eletrônicas, o livro capta o espírito de um tempo em que viceja a violência política.

"Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia." São versos de "As Caravanas", do disco de 2017, que ecoam em sintonia com a trama do livro, com uma cena em que o protagonista observa, impassível, a um amigo do Country Club espancar um índio velho que se deitava na calçada.

Há selfies com policiais que abateram um assaltante, há uma vizinha esnobe que calha de ser juíza federal, há a menção irônica a vestir camisa da seleção brasileira numa reunião escolar (depois de o primogênito de Duarte ser zombado como "filho de comunistas"), mastiga-se a notícia de que soldados dispararam 80 tiros contra o carro de um músico negro.

As menções ao presidente não são nominais, mas diretas. Uma das ex-mulheres do protagonista, enrabichada com um barão do agronegócio, ostenta uma estátua banhada a ouro de um homem em tamanho real, a qual costuma vestir com uma faixa verde-amarela.

Os eventos políticos do Brasil bolsonarista não foram plano primordial para a escrita de Chico, mas acabaram aproveitados por ele como recurso para desenvolver a ficção.

Escorado em dias que se estendem até o último 29 de setembro, o enredo apresenta o autor de um antigo sucesso literário às voltas com a entrega de um novo romance, com duas ex-mulheres por quem ainda perduram vínculos emocionais e com o tesão por uma jovem holandesa, Rebekka, casada com um salva-vidas do morro do Vidigal.

(Salva-vidas este que o protagonista conhece após ser resgatado de um afogamento no mar, episódio que lembra um acontecimento real e pouco conhecido da juventude do próprio Chico.)

A decisão de impregnar o romance das notícias de jornal permite, por exemplo, que Chico situe Rebekka numa manifestação que de fato ocorreu no Rio de Janeiro na data anotada no diário. E que se escute a comemoração de um gol do Flamengo num dia em que, de fato, o time pontuou.

A fragmentação da obra também elabora uma miscelânea de vozes, incluindo trechos em que a narração é supostamente feita por outros personagens –e, assim, Chico aproveita material de ideias de romance que não foram para a frente.

Cartas da tradutora Maria Clara (outra ex de Duarte) a um autor de língua inglesa datam no livro do final de 2017, época em que Chico as escreveu pensando numa trama que girasse em torno daquilo.

O mesmo vale para trechos datados de dezembro de 2016 sobre um cantor negro castrado, que na trama de "Essa Gente" acaba cumprindo função importante, mas lateral –virou personagem do best-seller escrito pelo protagonista, "O Eunuco do Paço Real".

A complexidade desse mosaico serve para embaralhar uma confusão autoral já característica da obra literária de Chico Buarque. Mas é inconfundível que este seja um autor que, polvilhando o seu livro de tanto linchamento, remédio tarja preta, helicóptero disparando na favela e até um "crescente sentimento monárquico", espera o estandarte do sanatório geral passar.

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