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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Nikkeis se manifestam contra fala do presidente", diz o título de uma página da edição mais recente do jornal Nippak, que chegou às bancas do bairro da Liberdade, em São Paulo, na quinta-feira (23). Sob a manchete, dois artigos de membros da comunidade com críticas a Jair Bolsonaro (sem partido).
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Apesar do que o título sugere, foram esparsas as reações dos nikkeis (japoneses ou descendentes vivendo fora do Japão) à mais nova declaração do presidente considerada preconceituosa contra eles. Desta vez, o alvo foi a jornalista Thaís Oyama, autora do livro "Tormenta", sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro.
Indagado por jornalistas no dia 16 sobre uma passagem da obra, ele disparou contra a imprensa e emendou: "Esse é o livro dessa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil, que faz agora contra o governo".
No mesmo dia, durante live em rede social, ele voltou a falar da repórter com irritação: "Lá no Japão ela ia morrer de fome com jornalismo, escrevendo livro". Thaís é brasileira, nascida em Mogi das Cruzes (SP), e neta de japoneses.
Para estudiosos do tema, integrantes da comunidade e advogados consultados pela Folha de S.Paulo, as expressões de Bolsonaro sobre a autora embutem racismo e xenofobia e se somam a outras vezes em que o presidente recorreu a estereótipos e fez comentários sobre características físicas da etnia.
Segundo eles, os gestos poderiam motivar abertura de investigação criminal, embora a questão seja controversa. No limite, a situação poderia ser classificada como injúria racial (quando se ofende alguém com base em raça, cor, etnia, religião ou origem). Nenhuma apuração, contudo, foi aberta sobre o caso.
A própria Thaís preferiu não polemizar. Disse inicialmente que não comentaria os ataques e, depois, afirmou que ficou até lisonjeada. À Folha, repetiu o raciocínio: "Fiquei até satisfeita, porque, se a tentativa foi desqualificar o livro, a afirmação mostrou que ele não tinha nenhum bom argumento para criticá-lo".
A jornalista conta que, nas mensagens de apoio que recebeu, muitas pessoas relataram ver preconceito na fala de Bolsonaro. "Me entristeceu saber que alguns nikkeis se sentiram ofendidos", afirmou ela.
Procurados, a Embaixada do Japão no Brasil e o consulado em São Paulo informaram que não têm considerações a fazer. À exceção de queixas pontuais em redes sociais, o silêncio de porta-vozes da comunidade tem sido a regra.
Desde que foi eleito, Bolsonaro teve ao menos cinco declarações ou condutas julgadas ofensivas por parcelas dos japoneses.
Em maio, o presidente soltou duas frases relacionando o país asiático e seus habitantes a miniaturas. Ao posar com um rapaz estrangeiro de feição asiática em Manaus, Bolsonaro fez um gesto com os dedos e perguntou: "Tudo pequenininho aí?".
Nove dias depois, ao falar sobre a reforma da Previdência em um evento em Petrolina (PE), reeditou a comparação: "Se for uma reforma de japonês, ele [Paulo Guedes, ministro da Economia] vai embora. Lá tudo é miniatura".
Na avaliação de membros da comunidade nipônica, as frases, longe de serem apenas piadas, têm gravidade comparável à de outras falas de Bolsonaro dirigidas a grupos como índios, quilombolas, mulheres, LGBTs e refugiados.
Na última quinta-feira (23), por exemplo, o chefe do Executivo falou que o índio está "evoluindo" e se tornando um "ser humano igual a nós". A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) anunciou que entrará na Justiça contra ele por crime de racismo.
No entendimento do professor de direito constitucional Rubens Glezer, o conjunto das declarações indica um cenário mais amplo de danos a liberdades e a direitos individuais. "A somatória de pequenas ações cria um contexto e um ambiente que é hostil a determinados grupos", diz o docente da FGV Direito SP.Para Kiyoshi Harada, autor de um dos artigos veiculados no jornal Nippak, as respostas do presidente ao livro de Oyama sugerem que o grupo não é bem-vindo no Brasil. Ele, que é filho de imigrantes, diz ter se sentido atingido pela fala.
"Qualquer que tenha sido o extrapolamento da liberdade de expressão [da jornalista], não cabe uma fala tão destemperada e preconceituosa. Referir-se a ela como 'essa japonesa' tem sentido pejorativo."Harada lembra ainda as críticas que Bolsonaro teceu à culinária japonesa em outubro, quando o presidente visitou o país e deu a entender que a gastronomia local se resume a peixe. Ele mal comeu as opções de um banquete oficial e postou foto preparando macarrão instantâneo no hotel.
"Ele pode não ter gostado, mas não é oportuno um chefe de Estado falar essas coisas", diz o advogado.Em 2017, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro mencionou a comunidade japonesa na mesma palestra em que atacou quilombolas –e pela qual foi julgado no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2018. A corte rejeitou denúncia da PGR (Procuradoria-Geral da República) sob a acusação de racismo.
No discurso, ele criticava o programa Bolsa Família quando afirmou, entre aplausos da plateia: "Alguém já viu algum japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara".
A frase, na avaliação do historiador Rogério Dezem, está impregnada do chamado "mito da minoria modelo". O conceito, combatido por ativistas que lutam contra a discriminação, envolve a concepção de que japoneses teriam que ser necessariamente estudiosos, equilibrados, trabalhadores e honestos.
A generalização implica supor que haja grupos superiores a outros na raça humana e é vista por muitos descendentes como um instrumento de pressão para que se adaptem a um suposto padrão.
"É importante lembrar que Bolsonaro passou boa parte da infância e adolescência no Vale do Ribeira, em São Paulo, região que tem um importante papel na história da imigração japonesa. A afirmação dele representa uma ideia compartilhada por grande parte da população brasileira", afirma Dezem.
"Esses clichês são usados quando são convenientes. Ele exalta uma minoria para diminuir outras", diz a estudante de sociologia Gabriela Shimabuko, fundadora do grupo Perigo Amarelo, que reúne descendentes de asiáticos e denuncia casos de preconceito.
Para ela, Bolsonaro tem repetidamente sido racista com os orientais e descendentes. "É uma coisa tão chula que em 2020 você não espera que as pessoas falem. Mas a gente cresce ouvindo."
A comunidade nipônica no Brasil é a maior fora do Japão, com cerca de 2 milhões de descendentes. A maioria (em torno de 1,2 milhão, segundo o consulado) está no estado de São Paulo, uma parte já na sexta geração. O auge da migração foi entre 1925 e 1935.
No Congresso, a fala do presidente sobre a autora do livro recebeu apoio da deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em rede social, ela reclamou: "A incongruência da imprensa: chamar um agente da PF de 'Japonês da Federal' pode, né?".
O deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) afirma que a fala sobre Oyama "é o ataque mais sério que Bolsonaro já fez contra um cidadão brasileiro". Ele diz que pretende tomar providências judiciais.
Kim Kataguiri (DEM-SP), que em seus perfis se define como "aquele japonês do MBL (Movimento Brasil Livre)", não quis opinar. Procurado, disse que não vale a pena "comentar toda bobagem que o presidente fala", porque isso "só aumenta a repercussão e não causa constrangimento nenhum a ele".
Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP, qualificou a fala de Bolsonaro de "ostensivamente discriminatória". "Chamá-la de japonesa é um jeito de eliminar a identidade da pessoa. É um tipo de discriminação nitidamente xenofóbica", afirma.
Do ponto de vista legal, Bolsonaro poderia ser responsabilizado na área civil se houvesse uma provocação do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União, de alguma organização da sociedade ou da própria Thaís Oyama, pedindo indenização por dano moral coletivo ou individual.
Uma corrente de profissionais do direito vê ainda embasamento para investigação na área criminal. "Entra como discriminação ou injúria em razão de origem ou etnia", afirma Mafei.
Glezer lembra que, sob Bolsonaro, há um debate sobre o que é atitude privada e o que faz parte da função pública do titular do Planalto.
"Uma live é um pronunciamento oficial? O tuíte dele tem que ser regulado como uma conta de comunicação oficial?", questiona. Por ser dotado de imunidade, Bolsonaro só pode ser processado por ato relativo ao exercício da função.
Para a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que como advogada foi uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT), as falas de Bolsonaro sobre Oyama entram na categoria de exercício da liberdade de expressão e não apontam para crime de responsabilidade.
"Não vejo elementos nem para abrir inquérito nem para impeachment", diz a professora licenciada de direito penal na USP. "Vejo que, como muitas outras manifestações do presidente, foi uma grande grosseria. Mas isso não chega à esfera criminal."
O Ministério Público Federal, que tem atribuição para cobrar esclarecimentos ao presidente ou iniciar um processo, informou que nenhum procedimento sobre o caso foi instaurado e que não recebeu pedidos de cidadãos para atuar.
Indagada sobre eventuais providências, a Procuradoria-Geral da República diz que "não adianta posicionamentos ou manifestações".
A jornalista Thaís Oyama afirmou à Folha que não pretende acionar Bolsonaro judicialmente. "Sei que os japoneses não gostam muito de confusão. Se eu fosse querer agradar a eles, eu acho que criar um caso em torno disso não seria a melhor maneira."A Presidência informou que não comentaria o caso.