Camarotização: por que o brasileiro gosta tanto de segregar o espaço?

Para especialista, o acesso das camadas mais populares ao que antes era exclusivo da elite fez com que o racismo e discriminação "saíssem do armário"

© Reuters

Lifestyle Exclusivo 26/09/15 POR José Augusto

Camarotização. A gourmetização do espaço. A palavra ganhou força na última semana depois de aparecer no tema da redação do vestibular da USP, o mais concorrido do país, mas já faz tempo que o camarote faz sucesso ao prometer fazer do cidadão um ser diferenciado – para usar uma palavra cara ao público adepto.

PUB

De comícios políticos à farra do Carnaval, quem está no camarote não quer ser qualquer um. Em Salvador, no maior carnaval do mundo, participa quem paga - e caro- para ter direito a uma camiseta estampada com diversos logos dos patrocinadores. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, para ter acesso ao espaços exclusivos no Carnaval é preciso desembolsar até mais de 1.000 reais.  A promessa é viver a festa rodeado de celebridades rodeadas de jornalistas. Os famosos mais trendy, porém, ficam em um cercadinho ao qual quase ninguém tem acesso. É a camarotização do camarote.

O Carnaval foi um start, mas não está sozinho no movimento de camarotização do país. Um dos lugares que lideram o ranking dos mais camarotizados do Brasil também está na Bahia: Trancoso. Há  20 anos era uma praia de pescadores, semideserta, só alcançada por aventureiros (inclusive os endinheirados tradicionais) e hippies. Agora, nas palavras da jornalista e consultora de moda Gloria Kalil, no Réveillon, virou uma espécie de “Cannes tropical”.

“Daqui a pouco, os moradores e antigos frequentadores só vão poder entrar no pedaço se estiverem com um vestido de marca, uma maquiagem de palco e um crachá que os autoriza a circular como no melhor estilo Festival de Cannes em dia de premiação final”, disse Kalil, em sua coluna.

A camarotização, neste caso na política - com seus cercadinhos em cerimônias oficiais e comemorações -, também horroriza Andrea Matarazzo (PSDB), vereador que carrega o sobrenome de uma família da alta sociedade paulistana. “Getúlio Vargas fazia sucesso porque andava no meio do povo”, conta ele. “O Lula, idem”, diz. “E eu adoraria ser o Lula”.

Acesso e renda

Mas, afinal, de festas a eventos públicos, por que o Brasil gosta tanto de segregar o espaço? Para Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora da Universidade de Oxford, a aversão à mistura é o resultado de anos de desigualdade social no país. "O que está por trás [da camarotização] é o desejo de distinção em uma sociedade colonizada como a nossa e marcada por uma grande estratificação social", diz.

"O Brasil sempre foi avesso e segregado. Apesar de ter a ideologia da mistura, na verdade sempre foi o pior dos apartheids", diz a antropóloga brasileira. Para ela, o acesso das camadas mais pobres da população ao que antes era exclusivo dos mais ricos potencializou a camarotização. "No Brasil pós-Lula, as pessoas das camadas mais populares estão acessando o que antes era exclusivo aos brancos de elite", conta. "Isso faz com que o racismo e a discriminação saiam do armário." Por outro lado, "é também um fenômeno de todas as classes. O cara mais rico de uma comunidade quer camarote também. Afinal, o modelo hegemônico de distinção é pervasivo, se espalha."

É nos aeroportos que esse desconforto com o acesso fica explícito, diz Pinheiro-Machado. Antes, andava de avião quem tinha muito dinheiro. Com a ascensão da classe média, os aeroportos estão mais cheios, e os mais ricos tiveram que se misturar aos mais pobres. As companhias aéreas logo correram para tentar reverter isso: "As companhias aéreas brasileiras, que nos últimos anos só tinham a classe econômica, agora voltam a ter assentos 'diferenciados', mais caros e com mais espaço", diz a professora. "O conforto, na verdade, é apenas uma desculpa apara agradar o passageiro rico que não quer ter o desprazer de sentar ao lado de sua empregada doméstica", explica. "É uma forma sutil de segregação."

A fuga dessa segregação no avião se reflete em um dado econômico do país: o Brasil está em segundo no ranking das maiores frotas de jatinhos e helicópteros particulares do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Para usar um termo popular nos camarotes - se é que podemos usar as palavras popular e camarote na mesma frase -, o que "agrega valor", além de camarotizar, é exibir o ato, com ou sem pau de selfie. Cesar Giobbi, colunista social há décadas, culpa as redes sociais pelo exibicionismo adotado pela elite.  “A indiscrição surgiu com a comunicação exacerbada”, diz.

Para Giobbi, a camarotização é o primeiro indício de que o lugar está decadente. Primeiro, um lugar como Trancoso se populariza, então é preciso camarotizá-lo para não perder o elã diferenciador, mas aí ele já perdeu a graça para a primeira elite que o frequentava como exclusivo.

“Quando chega nesse auge, em que o absurdo passa a ser incorporado, o lugar perde a graça”, diz. “Sapato de salto Louboutin no Quadrado não precisa. Tudo tem lugar e hora”, conta. Em tempo: “Quadrado” é o apelido usado pelos habitués de Trancoso, os de antes da camarotização, porque o local foi habitado inicialmente em torno de um gramado quadrado.

E no embate camarotização x pipocação, às vezes os da pipoca parecem se divertir mais. Na corrida de São Silvestre, que ocorre há mais três décadas no último dia do ano em São Paulo, pode-se pagar pela inscrição – 135 reais – ou correr na pipoca. Os pró-segregação reclamam da “bagunça” e dizem: “paguei 135 reais e é essa zona”, irritados. Enquanto isso, a maioria – inscrita ou não – se diverte. Fantasiados, eles vão ao longo trajeto de 15 quilômetros desfrutando da sensação de correr na Avenida Paulista – e não é fugindo da polícia em alguma manifestação – e de se sentir parte da cidade.

PARTILHE ESTA NOTÍCIA

RECOMENDADOS

politica Polícia Federal Há 12 Horas

Bolsonaro pode ser preso por plano de golpe? Entenda

fama MAIDÊ-MAHL Há 13 Horas

Polícia encerra inquérito sobre Maidê Mahl; atriz continua internada

justica Itaúna Há 12 Horas

Homem branco oferece R$ 10 para agredir homem negro com cintadas em MG

fama Harry e Meghan Markle Há 4 Horas

Harry e Meghan Markle deram início ao divórcio? O que se sabe até agora

economia Carrefour Há 10 Horas

Se não serve ao francês, não vai servir aos brasileiros, diz Fávaro, sobre decisão do Carrefour

esporte Indefinição Há 12 Horas

Qual será o próximo destino de Neymar?

fama Documentário Há 4 Horas

Diagnosticado com demência, filme conta a história Maurício Kubrusly

brasil São Paulo Há 13 Horas

Menina de 6 anos é atropelada e arrastada por carro em SP; condutor fugiu

economia LEILÃO-RECEITA Há 10 Horas

Leilão da Receita tem iPhones 14 Pro Max por R$ 800 e lote com R$ 2 milhões em relógios

brasil Brasil Há 8 Horas

Jovens fogem após sofrerem grave acidente de carro; vídeo