'Nunca mais deixei de ter dor', diz Neto, sobrevivente da Chapecoense

Um dos três atletas que sobrevieram ao episódio trágico, o ex-zagueiro teve o fim de sua carreira decretado pelos médicos no final do ano passado

© Sirli Freitas/Chapecoense

Esporte Drama 07/05/20 POR Estadao Conteudo

Já se passaram quase três anos e meio desde a tragédia da Chapecoense. E Neto continua com dores. O ex-jogador diz não passar um dia sequer sem que seja incomodado pelas dores no corpo, consequência do acidente aéreo que matou 71 pessoas, entre jogadores, membros da comissão técnica, dirigentes e jornalistas, no final de novembro de 2016.

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Um dos três atletas que sobrevieram ao episódio trágico, o ex-zagueiro teve o fim de sua carreira decretado pelos médicos no final do ano passado. E agora tenta reconstruir a sua vida em nova função, longe dos gramados. Tornou-se o superintendente de futebol da Chapecoense, tentando ajudar o clube em crise financeira na intermediação entre a diretoria e o vestiário e também entre o clube e empresas e instituições das quais a Chapecoense cobra indenizações.

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Nesta entrevista ao Estado, concedida durante o prêmio Laureus, em Berlim, ainda em fevereiro, Neto fala sobre as dificuldades físicas e emocionais que enfrenta todos os dias, como as dores e os traumas ("ainda é difícil entrar num avião"), critica aqueles que tentaram tirar vantagem sobre o clube em meio à tragédia e comenta sobre a sua busca por justiça. "Não recebemos nenhuma indenização até hoje".

Como foi tomar a decisão de se aposentar?

A decisão acabou sendo dos médicos. Eu tinha uma lesão na coluna que calcificou de uma maneira que foi boa para um cidadão normal. Mas, na época da tragédia, o médico disse que teria que me operar. Só que não tinha condição de mexer muito no meu corpo porque eu já tinha tido uma parada cardiorrespiratória e teria que ficar imobilizado. Quando comecei a treinar em alto nível, fiz alguns testes em universidades para ver o que poderia melhorar e seguir como atleta de alto nível. Minha coluna infelizmente sentiu muito essa sobrecarga que o atleta normalmente tem e meu corpo não pôde suportar. E aí, sim, os médicos me chamaram para conversar e falaram para mim que era melhor parar. Meu corpo não aguentou quando eu estava prestes a me tornar um atleta de novo. Se eu continuasse nessa pegada de treinos, certamente teria uma velhice não muito saudável, isso me complicaria no futuro.

Foi aí que surgiu a oportunidade de seguir no clube?

O presidente me chamou para conversar e disse que gostaria que eu estivesse fazendo parte do futebol. Aceitei de uma forma muito suave. E aceitei mudanças no meu contrato, ainda tinha salários atrasados a receber. Fiz um acordo para que me pagassem tudo em dois anos. Foi uma coisa mais para ajudar o clube. De uma forma ou de outra, a gente tenta ajudar a instituição, que é o mais importante nesse momento. O clube passa por uma situação financeira difícil e tenho o desejo de reverter essa situação.

Qual é exatamente a sua função no clube?

Sou superintendente de futebol, sou um cara que faz esse elo entre treinador, jogador, comissão, direção. Mas já deixei bem claro ao presidente que eu teria que estudar e fazer cursos na CBF para isso. Não adianta eu estar lá porque sou um ex-atleta que teve sucesso dentro do clube. Prefiro ter conhecimento para poder ajudar muito mais do que posso ajudar.

Você não quer que seja uma função simbólica...

Sim, quero ajudar de fato. Depois da tragédia, teve muita gente que se aproveitou do clube. Ajudar a Chapecoense não é só estar ali e fazer número. Ajudar a Chapecoense é ser mais efetivo numa resposta, numa contratação, às vezes numa mudança. E a gente precisa ter conhecimento para realizar tudo isso. A Chape é um clube que amei e amo, que fui feliz e vivi o melhor momento da minha carreira profissional.

Você ainda sente dor por causa do acidente?

Sinto, na coluna e no joelho. Mais na coluna. Todo dia. Nunca mais deixei de ter dor. Tem dias que eu tomo remédio para dormir, para aliviar um pouco, um relaxante muscular. Às vezes para deitar e para levantar, dói um pouco. Até o jeito de dormir incomoda um pouco mais.

Como você acorda todos os dias após uma tragédia como essa?

Antes da tragédia, eu já tinha muita fé em Jesus. Nunca perguntei para Deus por que eu era campeão, por que eu saí do meu bairro onde nasci, na periferia, e tive a oportunidade de ser um atleta profissional, de ter jogado no Santos, o time onde Pelé jogou. Mas quando acontece uma coisa ruim desse tamanho, também não adianta ficar se perguntando e se lamentando. Agora mesmo eu vim de avião para cá (Berlim). Não é fácil andar de avião. Mas eu tenho que enfrentar meus medos. Meu medo não pode ser maior que a minha fé. Tento não perguntar o porquê das coisas ruins e nem o porquê das coisas boas.

Tem lembranças do acidente?

Lembro de tudo até o socorro e o resgate. Estava consciente o tempo todo. Lembro de quando o avião desligou, uma sensação horrível. Quando o avião apagou, senti uma aflição muito grande porque eu tinha sonhado que aquilo iria acontecer, três dias antes. Tinha até falado para a minha esposa, quando saí para viajar: ‘estou achando o dia estranho, ora por mim, pede a Deus, porque meu sonho está na minha cabeça’. O avião desligou, acabou o barulho do motor. Escutava o barulho do vento, o avião planando, tudo desligado, mexendo muito, e todo o mundo pedindo a Deus. Eu falava muito: Jesus, eu sei que você existe e sei que você faz milagres. Eu li na Bíblia. Eu li um monte de vezes a mesma coisa. Sei que tu pode nos ajudar. Eu pedia para nós, e não para mim. Sabia que não tinha como eu ficar vivo sozinho. Ou nós ficaríamos vivos todos juntos, ou nós todos morreríamos. Quando o avião bateu, eu apaguei. Só fui acordar 11 dias depois.

Você passou a olhar para alguma coisa de forma diferente após o acidente?

Eu notei muito mais a ambição. Eu não notava muito antes, não em mim. Nunca fui ambicioso por coisas materiais. Mas depois da tragédia eu pude ver que o ser humano tem ficado cada vez mais ambicioso pelo sucesso, dinheiro, ganância desenfreada. Sou um cara estudioso, estudo bastante a Bíblia. Faço faculdade de Teologia. Deus deu o livre arbítrio para cada um. Não é um Deus ditador. Cada um faz o que quer e um dia vai acertar suas contas com o papai do céu.

Você tem planos de virar pastor?

Eu tenho vontade... Pastor é muito profundo, porque cuida de pessoas. Hoje em dia está na moda ser pastor. Tem cada cara fanfarrão que fala que é pastor, que não cuida nem da própria família. Eu tenho muita vontade de falar de Jesus. É tão aberto e tão simples crer em Jesus, crer em Deus. Não é uma coisa radical. Tudo o que aprendi sobre Jesus é diferente até de algumas coisas que a gente ouve por aí. Eu tenho muita vontade de pregar.

Como está a luta pelas indenizações?

Não recebemos nenhuma indenização até hoje. É um absurdo. A Chapecoense não recebeu nada, as famílias não receberam nada porque foi feito um seguro, que ninguém sabia, que não poderia viajar para a Colômbia e nem para o Peru. Só que a Bolívia liberou o avião para ir para Colômbia, mesmo sem seguro, e a Colômbia aceitou o avião mesmo sem seguro. Foi uma sequência de erros. A (falta de) gasolina no avião foi o último problema. Se não tivesse subido o avião, não teria havido o acidente.

Qual é o próximo passo nesta busca?

Fizemos um protesto na frente da Tokyo Marine (seguradora), na Aon (resseguradora), em Londres, no ano passado. É um absurdo o descaso destas empresas. Pode enviar o dinheiro que for, as pessoas não voltam mais. Mas quando você vê que perdeu amigos, que deixaram esposa e filhos... É um descaso que não tem relação com eles. Agora abriu uma CPI, que vão chamar representantes destas empresas. Vão ser convocados, já tiveram algumas audiências e eles não foram. O Ministério Público negocia um acordo com essas empresas e com as famílias. A gente torce para que aconteça.

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