©  Rafael Neddermeyer / Fotos Públicas
RIO DE JANEIRO, RJ (UOL/FOLHAPRESS) - A rede de churrascarias Fogo de Chão, frequentada pela elite carioca, dispensou centenas de funcionários, pagou apenas uma parte das verbas rescisórias aos demitidos e, no Rio, atribuiu ao governo do estado o pagamento do valor restante. A empresa diz que foram 436 demissões no país, 114 delas no Rio. Ex-empregados ouvidos pela reportagem afirmam que foram mais de 600.
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A Fogo de Chão tem oito unidades no Brasil e mais 44 no exterior, nos Estados Unidos, Porto Rico, México e também no Oriente Médio. A rede pertence ao fundo de investimentos norte-americano Rhône Capital.
A churrascaria não é a primeira empresa no estado a demitir e responsabilizar o governo pelo pagamento dos direitos dos ex-empregados. A rede de pizzarias Parmê, com mais 30 lojas, usou a mesma justificativa na demissão de funcionários.
Força maior
Baixar as portas e funcionar apenas com entregas já eram medidas esperadas pelos funcionários da rede, ao ser instituída a primeira quarentena no estado, em março. O que os empregados não esperavam é que a empresa os demitisse sem o pagamento de aviso prévio e sem o valor total da multa de 40% do saldo do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
Funcionários da churrascaria no Rio dizem que a Fogo de Chão usou como argumento para o não pagamento das verbas o artigo 486 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
O artigo citado diz que o governo será responsável pelo pagamento de indenizações se a empresa tiver sido prejudicada por uma decisão das autoridades que impossibilite a continuidade da atividade. Nesse caso, ficaria configurado o motivo de força maior. O uso desse artigo para justificar o não pagamento das rescisões é visto com ressalva por advogados trabalhistas.
Ex-empregados dizem que quem não foi demitido sofreu redução de salário e de jornada de trabalho, medida autorizada pelo governo federal na Medida Provisória 936.
'Entendo a demissão, mas poderiam nos pagar' Barman da unidade Botafogo, restaurante com vista para a Baía de Guanabara, na zona sul do Rio, Felipe de Castro, 39, trabalhou no local por mais de quatro anos. Ele assinou a demissão no dia 4 de abril e diz que se sentiu enganado pelo restaurante. Ele estima que deixou de receber R$ 6.000.
"Começou a pandemia e eles deram dez dias de férias. No término, chamaram a gente e comunicaram que iam nos despedir. Nesse dia, avisaram que pagariam tudo, menos o aviso prévio. Assinamos os documentos e depois vimos que a multa não era de 40%, e sim de 20%, e que o restante quem pagaria era o governo [segundo a churrascaria]", contou.
"Trabalhamos duro lá. Nunca recebemos os valores correspondentes a feriados. Hora extra era um jogo de faz de conta e, no final, ainda não pagaram tudo. Até entendo a demissão, mas poderiam nos pagar. Imagine o quanto eles economizaram às custas dos direitos dos funcionários. O restaurante sempre funcionou no azul [sem deficit de caixa]", disse.
Ex-empregados voltam para o Nordeste O ex-funcionário afirmou que sentia orgulho de trabalhar no local, mas que agora pretende acionar a empresa na Justiça. "Usaram de má-fé para se aproveitar do momento", concluiu. Por causa da demissão repentina, sem aviso, Castro retornou a Milton Brandão, no Piauí, para viver com os pais, pois diz que se manter no Rio é muito caro.
Quem também precisou arrumar as malas e deixar a capital carioca foi Fernando Oliveira, 24. Ele deixou o Maranhão para trabalhar na Fogo de Chão no Rio, onde permaneceu por nove meses. Com a demissão, retornou para a casa da família, em Olho d'Água das Cunhãs (MA).
Oliveira disse que não acionará a empresa na Justiça porque tem esperança de voltar a trabalhar no local. "Criei uma amizade muito grande com dois gerentes, eles me ajudaram muito. Sei que eles não têm culpa disso. Mas outras pessoas acima deles foram covardes com os trabalhadores da Fogo de Chão. Assim como eu, muitos amigos davam o seu melhor, e eles fizeram isso", disse.
Empresa diz que vai recontratar quando crise passar Procurada, a Fogo de Chão disse por meio de nota que, à medida que os restaurantes reabrirem e a economia melhorar, vai recontratar gradualmente a equipe.
"O zelo por nossos colaboradores sempre foi compromisso central da filosofia de trabalho da Fogo de Chão. Reforçamos que atuamos seguindo as normas do artigo 486 da CLT, indenizando os membros da nossa equipe de acordo com a lei para que todos tivessem acesso ao pagamento de férias e 13º salário, além do acesso ao FGTS e seguro-desemprego", disse a companhia.
A advogada trabalhista e professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Carolina Monteiro de Castro explica que a dispensa baseada no artigo 486, conhecido como fato do príncipe, ocorre quando a empresa é obrigada por decisão do governo a paralisar suas atividades. No entanto, ela ressalta que a empresa precisa provar à Justiça que não tinha condições de funcionar e que não houve oportunismo.
"Vale lembrar que as autoridades governamentais também podem ser chamadas nesse processo. Se a autoridade falar que essa empresa está errada, que não fechou totalmente, por exemplo, é uma prova nos autos [a favor do funcionário]", disse.
Segundo ela, funcionários que se sentirem lesados podem recorrer à Justiça em ação individual ou coletiva.