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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Com o celular na mão e o braço para fora da janela, Maria de Fátima Bezerra Rodrigues procura o sinal de internet do vizinho, na comunidade de Heliópolis, a maior favela de São Paulo.
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É uma busca inglória porque nem sempre dá certo. Quando funciona, é um quebra-galho. A conexão, lenta, é compartilhada voluntariamente ainda por outros moradores daquele trecho da favela, em que casas de tijolo aparente se empilham às margens de um córrego de esgoto a céu aberto.
"Por causa da pandemia, qualquer cadastro ou agendamento tem de ser pela internet. E como é que faz?", questiona Maria de Fátima. Essa dimensão da desigualdade brasileira ficou ainda mais flagrante durante a pandemia da Covid-19, em que conexão à internet virou sinônimo de acesso a benefícios e direitos, a aprendizado, compras e trabalho -numa espécie de exclusão dentro da exclusão.
Ali na beira do córrego, na semana passada, enquanto Maria de Fátima equilibrava seu celular no ar, técnicos avaliavam como fazer a instalação de um dos 20 pontos de wi-fi livre programados para o bairro dentro do projeto Mães da Favela ON, da Cufa (Central Única das Favelas), que pretende conectar 2 milhões de moradores de favelas brasileiras à internet.
A iniciativa busca disponibilizar conexão aberta à internet em diversos pontos de 150 complexos de favelas nos 26 estados do país mais Distrito Federal, além de disponibilizar 500 mil chips para mães cadastradas nas bases da Cufa em quase 5.000 desses territórios pelo país. "Será o maior projeto de conectividade em favelas já feito no Brasil", gaba-se Celso Athayde, fundador da Cufa e idealizador do projeto.
Para viabilizar pontos de wifi livre e distribuição de chips, ele articulou parcerias de peso com empresas como Alô Social/TIM, PicPay, TikTok , VR Benefícios, Volvo e banco Santander, além das fundações Tide Setúbal e Casas Bahia e dos institutos Península, Humanize e Galo da Manhã.
"Durante o trabalho emergencial que fizemos em favelas desde o início da pandemia, à medida que a questão do alimento era resolvida pela entrega de cestas básicas, a demanda que surgia era por acesso à internet. Rapidamente, esta virou a nova prioridade", conta ele, que afirma ter arrecadado R$ 145 milhões em recursos e doações convertidos em cestas básicas para o projeto Mães da Favela, que antecedeu sua versão "ON".
"O sonho de conectar as favelas é uma perseguição nossa de longa data", diz ele. "Mas foi perceber que a pandemia atingia as mulheres das favelas em especial que me fez focar nossos projetos nelas, e perceber que conectividade era essencial para qualquer movimentação em direção à retomada econômica, em especial num momento em que os filhos estão fora da escola, em casa."
Levantamento do Data Favela de agosto deste ano apontou que 84% dos moradores de 247 comunidades pesquisadas que tinham filhos em idade escolar afirmaram que seus pacotes de dados para acesso a internet costumam se esgotar antes do final do período para o qual eram previstos.
Segundo o estudo, 46% das crianças em idade escolar dessas comunidades não têm assistido a aulas durante a pandemia.
"Com todo mundo com celular, o acesso existe em alguma medida. Mas não é suficiente para educação à distância nem para atividades de trabalho", avalia Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, parceiro da Cufa no Data Favela. "Internet deveria ser também considerada direito fundamental", completa.
"É de vez em nunca que a gente tem R$ 20 para colocar crédito no telefone e ter internet", conta Vanessa Oliveira Rocha, 31, moradora de Heliópolis. "Eu tenho quatro filhos e, como não consigo colocar crédito para todos, eles não tiveram mais aulas desde que começou a pandemia. Na escola é tudo online. E sem internet...", lamenta. "Ter internet hoje é tão importante quanto ter água em casa."
A falta de conectividade também prejudicou Vanessa na hora de requisitar o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal. Pesquisa TIC Domicílios de 2019 apontou que 70% dos brasileiros usavam internet para acessar órgãos de governo eletrônico -e estima-se que, na pandemia, esse uso tenha se intensificado.
Os chips do programa Mães da Favela ON darão acesso limitado a internet, mas ilimitado a uma plataforma com conteúdos educativos e de empreendedorismo elaborada especialmente para o projeto, sob a supervisão da Unesco, a agência das Nações Unidas para educação e cultura.
A curadoria da plataforma, a cargo do Centro de Inovação para a Educação Brasileira, é feita a partir de colaborações com Instituto Península, Fundação Roberto Marinho, Canal Futura, portal Eduka e SOS Educação.
"Haverá conteúdo educacional para crianças desde a primeira infância até o Ensino Fundamental 2, e muita coisa com foco nas mães: desde estratégias para complementar o processo educativo dos filhos durante a pandemia, até como fazer bolo ou salgadinhos para fora, calculando custos e margem de lucro", explica a diretora da Unesco, Marlova Noleto, que celebra o fato de o Mães da Favela ON focar em duas desigualdades simultaneamente: de conectividade e de educação.
"Existe um fosso digital que precisamos superar e, conectadas, essas mães poderão acessar um portal com temas de interesse. Vamos produzir algo amigável, que seja fácil de usar, para que as pessoas de fato consigam acessar os conteúdos", destaca ela.
Quase metade (49%) dos brasileiros que não têm conexão afirmam não saber usar a internet, segundo a TIC Domicílios, que pesquisa o uso de tecnologias de informação e comunicação.
Há dois meses, um projeto piloto do Mães da Favela ON acontece na Rocinha, no Rio de Janeiro, com 30% da capacidade total de pontos de conexão naquela comunidade.
Neste período, a rede do projeto foi acessada por 4.449 usuários únicos, número que tende a mais que triplicar quando todos os pontos de conexão estiverem ativos. Para acessar a internet gratuita, cada pessoa precisa se cadastrar e, a cada 30 minutos de conexão, uma peça publicitária dos financiadores do projeto é exibida.
"Em cada favela nós faremos uma pesquisa para identificar a demanda local de uso", explica Leo Ribeiro, CEO da Comunidade Door, responsável pela infraestrutura do projeto Mães da Favela ON.
Iniciativas de criação de espaços de internet livre já foram feitas pelo país, mas muitas esbarraram no excesso de tráfego, que gerou conexões de baixa qualidade. Para Ribeiro, o projeto da Cufa busca contornar essa dificuldade com auditorias periódicas para "reavaliação de pontos de acesso e o tamanho da banda".
Após a instalação em Heliópolis, Brasilândia, Parque Santo Antônio e Cidade Tiradentes estão no topo da lista de São Paulo, enquanto Cidade de Deus e Complexo da Penha dão continuidade ao projeto piloto do Rio.
"Nos campinhos de futebol, nos becos ou nas praças, conectar essas mulheres chefes de família à internet e a esses conteúdos selecionados significa, de forma objetiva, dar poder para elas", avalia Athayde, que defende o projeto como o maior do país quando o assunto é conectividade em favelas.
"Vamos transformar essa conexão numa ferramenta de educação e de retomada econômica nesses territórios."