Povo mais antigo do Pantanal perde 83% do território em incêndio

A Terra Indígena (TI) Baía dos Guató teve ao menos 83% da sua área destruída nas últimas semanas

© Getty- imagem ilustrativa

Brasil Destruição 18/09/20 POR Folhapress

TERRA INDÍGENA BAÍA DOS GUATÓ, MT (FOLHAPRESS) - Largados à própria sorte, os índios guatós já perderam quase todo o seu território para o fogo que devasta o Pantanal. O incêndio sem precedentes exacerbou os problemas do povo mais antigo da região, que sofre com a escassez de água, falta de luz, assistência médica precária e desemprego.

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Localizada em Barão do Melgaço (MT), a Terra Indígena (TI) Baía dos Guató teve ao menos 83% da sua área destruída nas últimas semanas, segundo cálculo do Instituto Centro de Vida (ICV). Os 16 mil hectares devastados até agora equivalem a 101 parques Ibirapuera.

"Espia como está a nossa natureza, a nossa saúde. Estamos descobertos de tudo, esquecidos por tudo", diz a líder Sandra Guató, 63. "O fogo devastou também dentro de mim, eu sinto uma angústia."

Toda a vegetação em volta da sua casa, à beira do rio Cuiabá, foi destruída pelo fogo há cerca de dez dias, com a exceção de uma pequena horta. Ela contou apenas com a ajuda de um dos filhos para salvar a construção de chão batido e telhado de palha.

Os moradores afirmam que brigadistas de incêndio chegaram de barco, mas passaram apenas um dia. Com enxadas, fizeram um aceiro (faixa de terra exposta para isolar o fogo) para proteger três casas, a alguns quilômetros da moradia de Sandra Guató. Depois, partiram.

"Vieram aqui pra fazer o aceiro, mas depois embarcaram porque tinham de acudir Porto Jofre, que estava pegando fogo lá, porque lá tem hotel. E me deixaram sem nada.", diz ela.

Em outra região da TI, moradores à beira do corixo (canal) do Bebe disseram que um helicóptero militar desceu ali, mas só depois de os moradores terem conseguido salvar as casas sozinhos.

Todo o entorno acabou consumido pelo fogo. Plantações de banana, mandioca, cana, abacaxi e outros produtos estão destruídas. "Depois que o fogo passou, apareceram aqui. Não fizeram nada. Falaram que vinham buscar nós. Buscar pra quê? O fogo já passou, já quase matou nós", diz Antônia Luzia de Oliveira, 65.

No Pantanal de Mato Grosso, o Corpo de Bombeiros e os militares atuam principalmente em áreas privadas, como o Sesc Pantanal, fazendas e pousadas. Além do acesso logístico mais fácil, eles costumam receber alojamento, alimentação e ajuda material, infraestrutura indisponível nos guatós.

Trata-se do pior incêndio já registrado no Pantanal. Do início de janeiro até domingo (13), o bioma já perdeu 2.916.000 hectares, o equivalente a 19,4% do total. O lado de Mato Grosso é o mais atingido, com 1.742.000 hectares destruídos. Os números são do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais, da UFRJ, repassados pelo Ibama.

Além do fogo, os guatós sofrem com a falta de água, em meio à pior seca em pelo menos duas décadas.

O corixo do Bebe já secou em diversos pontos. A pouca água, parada e enlameada, se tornou a única alternativa para humanos e animais, principalmente os onipresentes jacarés.

"Estamos bebendo urina e bosta dos jacarés e das capivaras. Porque não tem outra água aqui perto. Nunca secou assim. Estou com o estômago ruim, ruim, mas não tem outra água. E com essa seca, você fica o dia inteiro bebendo. Já bateu diarreia, vomitação, dor de barriga, tudo", afirma Antônia Oliveira.

Não deveria ser assim. À beira do rio Cuiabá, uma placa do Ministério da Saúde, parcialmente queimada, anuncia a construção de um sistema de água. A obra, contratada em 2017 por R$ 422.236,88, deveria ter sido entregue em novembro de 2018.

O posto de saúde do Dsei é outra fonte de preocupação. O local não tem luz, e a água é armazenada em baldes. Nos dias da visita, apenas um técnico especializado em contratos estava no local, sem máscara.

Questionado pelos guatós sobre a ausência de enfermeiros e médicos, ele afirmou que, por causa da pandemia, houve corte de verbas.

A falta de eletricidade aflige todas as comunidades guatós. À Folha os moradores mostraram uma linha de transmissão do Grupo Energisa que passa pela terra indígena.

Dali, relatam os guatós, a eletricidade atravessa o rio Cuiabá em quatro pontos para abastecer quatro fazendas de gado. "A luz está bem ali, bem aqui. Atravessa aqui pra puxar pra fazendeiro. Nós não temos direito?", questiona Sandra Guató.

Procurada, a Energia Mato Grosso informou que "está comprometida com a conclusão das obras que atenderão a Terra Indígena Baía dos Guató" e que aguarda liberação de licenciamento ambiental para construir mais 11 km de rede dentro da Área de Preservação Permanente.

Na manhã desta quinta-feira (17), a Folha de S.Paulo também pediu esclarecimentos à Funai, ao Ministério da Saúde, ao Ibama e ao Ministério da Defesa. Apenas a Saúde respondeu.

A pasta afirma que a empresa contratada para a construção do sistema de água da Aldeia Aterradinho solicitou rescisão contratual em março de 2019, "devido à dificuldade da logística para efetivação da obra". O saldo remanescente do recurso foi estornado após o contrato vencer, em abril de 2019.

O ministério diz, ainda, que "não houve diminuição de recursos enviados ao Dsei Cuiabá -e sim, um acréscimo de aproximadamente R$1,5 milhão- além do recurso disponibilizado para o combate à Covid-19".

"A aldeia conta com uma agente indígena de saúde que permanece monitorando os indígenas. Em condições normais, a equipe passa 20 dias nas aldeias da região e retorna após 10 dias. No intervalo das visitas, fica um técnico de enfermagem -que mantém a população assistida neste período."

Segundo a pasta, "há dificuldade de acesso à aldeia pelo baixo nível da água do rio -única forma de chegar ao local. Os motores das embarcações que transportam as equipes foram danificados nas diversas tentativas, mas devem estar prontos ainda nesta semana".

A Folha de S.Paulo não teve dificuldade para acessar a TI pelo rio.

Os guatós são um dos poucos povos indígenas do Pantanal que sobreviveram ao contato. Eles costumam morar sobre aterros construídos -os mais antigos foram erguidos há 8.000 anos, segundo o artigo "Guató", publicado por pesquisadores da UFRJ em 2019 na revista Linguística.

Os primeiros relatos europeus sobre os guatós, conhecidos como índios canoeiros, datam do século 16. No século 19, com a entrada em massa do gado no Pantanal, a perda do território acelerou. Alguns migraram para as cidades e outros passaram a trabalhar para fazendeiros brancos, em condições descritas como de escravidão pelos mais velhos.

Em meados do século 20, chegaram a ser considerados extintos, mas, a partir da década de 1970, se reorganizaram e voltaram e exigir direitos territoriais, diz o artigo.

A TI Baía dos Guató foi a última homologada do país, em 2018. Parte da área é contestada na Justiça por uma fazenda da região, que mantém gado na parte em litígio.

Em Mato Grosso do Sul, existe também a TI Guató, homologada em 2003, com 11 mil hectares. As duas TIs somam cerca de 450 pessoas. A língua, quase extinta, hoje está em recuperação.

Na Baía dos Guató, a principal fonte de renda é a venda de isca para pesca de turismo. O negócio, no entanto, está parado pela pandemia e pela seca histórica.

Desde o início da pandemia, a única ajuda recebida do poder público foram duas cestas básicas por família, distribuídas pela Funai. Alguns relataram dificuldades para se inscrever no programa de auxílio emergencial.

"Nós não precisamos de muita coisa", diz Sandra Guató. "Precisamos da água e da terra, e isso eu vejo acabar."

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