Mulheres relatam machismo e desamparo no sistema judicial

O caso Ferrer é um exemplo didático das instituições trabalhando para proteger os algozes", diz a advogada Raphaella Reis, da Rede Feminista de Juristas, a deFEMde

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Brasil MACHISMO 08/11/20 POR Folhapress

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A dramaturga Heloisa Cardoso, 29, processou o homem com quem por seis anos, segundo ela, viveu um relacionamento abusivo. Um professor 15 anos mais velho com quem teria perdido a virgindade, ainda menor de idade, e que teria chegado a simular uma doença terminal.

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Acabou processada por ele após encarar um julgamento em que a defesa a pintou como uma amante em busca de vingança. Para Heloisa e sua advogada, Júlia Drummond, a juíza responsável cometeu uma série de violências ao longo do caso, encerrado sem condenação.

"Um exemplo de argumentação bastante machista", diz Drummond. Como a usada contra Mariana Ferrer, a influenciadora digital hostilizada pelo defensor do empresário que acusou de estupro. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho divulgou fotos sensuais da jovem e disse que "jamais teria uma filha do nível" dela. Seu cliente foi absolvido após o juiz entender que não havia provas contra ele, e o promotor afirmar que a Justiça brasileira não prevê a "modalidade culposa do estupro de vulnerável".

"Expedientes que culpabilizam a vítima ao máximo e cavam arguições absurdas para relativizar a conduta dos agressores são o padrão", diz a advogada Raphaella Reis, da Rede Feminista de Juristas, a deFEMde. "O caso Ferrer é um exemplo didático das instituições trabalhando para proteger os algozes."

Não faltam situações do tipo. Como o delegado que perguntou à adolescente de 16 anos se ela "tinha o costume de fazer isso, se gostava" quando foi colher seu depoimento sobre o estupro coletivo que sofreu em 2016. O ato foi divulgado pelos próprios violentadores em vídeo que circulou no WhatsApp: ela inconsciente enquanto vozes ao fundo diziam coisas como "essa aí mais de 30 engravido [sic]".

Ou a dos desembargadores gaúchos que reverteram a condenação de um motorista de aplicativo no ano passado. O juiz de primeira instância apontou que a passageira que o denunciou por estupro "estava com sua capacidade de reação anulada por embriaguez completa", ao ponto de não conseguir entrar no carro sozinha. Os magistrados da esfera superior disseram que ela mesma admitiu ter bebido muito, "o que ocorreu por sua livre e espontânea vontade", e que não havia provas de que não consentiu em transar.

Nem todas as mulheres topam falar abertamente sobre o que passaram, e Reis diz que as entende. "Assim a gente expõe a vítima a uma tripla violência: ela é estuprada, humilhada pelo Judiciário e ainda precisa colocar as finanças em risco para pagar o agressor."

Reconvenção é o nome que se dá à ação de revide do réu contra quem o processou.

Heloisa pediu indenização de R$ 40 mil por danos morais e enquadrou o professor na Lei Maria da Penha, que abrange violência psicológica, "entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima".

Ele devolveu com outra ação e pediu R$ 30 mil. "Argumento da defesa: ela era concubina e estava muito irritada. Aquela ação era porque ele não quis ficar com ela", diz sua advogada.

Heloisa conta que passou a se medicar por depressão e que tentou se matar com uma overdose de remédios após ser agredida verbalmente pelo ex-namorado.

"É muito difícil fazer esta denúncia porque meu abusador não é um cara bruto", ela disse num vídeo de 2017 em que fala do relacionamento sem nomear o ex-parceiro. Tratava-se de alguém "visto como superprogressista, até mesmo feminista", no círculo teatral.

Se discutiam, ele falava que se infartasse a culpa era da ex-aluna, segundo ela. "Por seis anos ele destruiu minha autoestima, me manipulou."

A juíza indeferiu os dois pedidos de indenizações, o dele e o dela. Na sentença, escreveu que o réu se via alvo de "um sentimento de vingança" e que "frustrações e desencantos fazem parte da vida adulta".

Heloisa afirma que se sentiu violentada na travessia judicial, sobretudo porque recusaram-lhe uma audiência com testemunhas. Tinha convocado dez, como outras ex-alunas que narrariam experiências iguais com o dramaturgo.

A batalha judicial da modelo Jessica Aronis, 30, ainda continua. Ela processa um ex-companheiro que a agredia física e psicologicamente, como chamá-la de burra e obrigá-la a se ajoelhar para pedir perdão depois de uma comida que não o agradasse.

O relacionamento lhe rendeu depressão e anorexia. "Fui vítima de todos os tipos de violência. Queria me enfiar no quarto e não sair mais dali. Mas o correto é denunciar, certo?"

Assim o fez, mas encarou um sistema que pressupõe a vítima como culpada, afirma. "Em vez de se sentir acolhida, você tem que enfrentar outro tipo de violência. Lá você recebe questionamentos do tipo 'o que você fez para que seu companheiro fizesse isso com você?'. Como se qualquer coisa que você pudesse ter feito justificasse alguma atitude agressiva."

Tentativas de desqualificar a parte fragilizada são comuns, diz a promotora Gabriela Manssur, do instituto Justiça de Saia. Ela conta que já ouviu de tudo em audiências, como 'ah, mas a vítima tinha amante' ou 'era alcoólatra'. "O direito de defesa tem limite."

"Nunca vou me esquecer das palavras do juiz após meu relato de agressão", conta Jessica. "'Ah, então quer dizer que ele te bateu e você não revidou?' Até hoje tenho acompanhamento psiquiátrico para entender que a culpa não é minha... A culpa não é da vítima, e nunca vai ser."

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