Colapso em Manaus e derrapada na vacinação fortalecem base jurídica para impeachment de Bolsonaro

A Constituição lista em seu artigo 85 os atos do presidente que configuram crime de responsabilidade. Entre eles está os que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais -a saúde estando no último grupo

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Política BOLSONARO-IMPEACHMENT 22/01/21 POR Folhapress

BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A morte de pacientes por falta de oxigênio em Manaus e os fracassos em série do planejamento federal para aquisição e distribuição de vacinas contra a Covid-19 deram mais solidez ao embasamento jurídico passível de ser usado para abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

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A análise das regras da Constituição e da Lei dos Crimes de Responsabilidade (1.079/50), os dois mecanismos jurídicos cabíveis, mostra a possibilidade de enquadramento de vários atos e omissões de Bolsonaro e do governo no enfrentamento da doença que já causou a morte de mais de 210 mil pessoas no país.

Leia Também: Covid-19 multiplica pedidos de impeachment de Bolsonaro

O jornal Folha de S.Paulo compilou ao menos 23 situações em que Bolsonaro, em seus dois anos de governo até aqui, promoveu atitudes que podem ser enquadradas como crime de responsabilidade, e que vão da publicação de um vídeo pornográfico em suas redes sociais no Carnaval de 2019 aos reiterados apoios a manifestações de cunho antidemocrático.

No caso da pandemia, dos oito especialistas ouvidos pela reportagem, sete apontam a garantia social da saúde da população como a principal regra violada pelo governo.

A Constituição lista em seu artigo 85 os atos do presidente que configuram crime de responsabilidade. Entre eles está os que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais -a saúde estando no último grupo.

A Lei dos Crimes de Responsabilidade também define ser crime de responsabilidade violar "patentemente" os direitos sociais.

Diferentemente de crimes comuns, esse tipo de infração recai em um grupo restrito de pessoas, como presidentes, prefeitos, ministros de Estado e ministros do Supremo Tribunal Federal, e é o que dá base jurídica a pedidos de impeachment.

"Não resta a menor dúvida de que o presidente Bolsonaro atentou, em reiteradas oportunidades, contra o direito à saúde", afirma Elival Ramos, professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP e ex-procurador-geral do estado de São Paulo.

"Quando a gente olha uma atuação deliberada, reiterada, coordenada, uma ação 'pró-pandemia', temos claramente um crime de responsabilidade, uma vez que o governo está agindo completamente, e não eventualmente, fora do esquadro constitucional", reforça Eloísa Machado, professora de direito na FGV-SP.

Ela afirma ainda que no caso de Manaus "há uma atuação intencional do governo federal que gerou como consequência imediata a morte de pessoas por asfixia". A ação se soma a medidas de boicote à vacinação, alinhamento a movimentos antivacina e recomendação de medicamentos que não têm comprovação científica.

Conforme a Folha de S.Paulo revelou em diversas reportagens, o governo soube com antecedência e ignorou alertas da iminência do colapso de oxigênio em Manaus. Ao mesmo tempo, montou e financiou força-tarefa para pressionar a cidade e médicos do Amazonas a receitar medicamentos não respaldados pela comunidade científica, como a cloroquina e a ivermectina, no que chama de "tratamento precoce".

O Ministério Público Federal no Amazonas instaurou inquérito civil para apurar possível improbidade administrativa.

"Percebemos que essa campanha, que seria incentivada pelo Ministério da Saúde, teria acontecido no momento em que já se vislumbrava uma possível e grave falha de abastecimento de oxigênio", afirma o procurador da República José Gladston Viana Correia, um dos responsáveis pela investigação.

"Houve uma comitiva do Ministério da Saúde até Manaus [chefiada pelo ministro Eduardo Pazuello]. Sabemos que os recursos públicos e humanos são escassos, então verificaremos quais foram as prioridades eleitas e por que se optou, naquele momento de falta de suprimento básico ao funcionamento das Unidades Básicas de Saúde, por se fazer uma campanha desse teor junto a médicos que já estavam naquela situação de pressão", acrescenta Correia.

Em outro exemplo, um aplicativo do Ministério da Saúde indicado a profissionais da área recomendava remédios sem eficácia contra a Covid. A partir do preenchimento de um formulário eletrônico com os sintomas do paciente, o TrateCOV sugeria a prescrição de hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina em qualquer idade, inclusive para bebês, e em situações diversas, não só para Covid-19.

Além da comunidade científica nacional e internacional, a própria Anvisa, ao autorizar o uso emergencial das primeiras vacinas no país, ressaltou não haver alternativa terapêutica aprovada e disponível para prevenir ou tratar a Covid. O ministério tirou o aplicativo do ar nesta quinta-feira (21).

O ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, além de listar o que considera crimes de responsabilidades em atos de Bolsonaro, afirma que, ao investir em desinformação e boicotar as iniciativas de combate à pandemia, o presidente violou o direito constitucional da população à saúde.

Dias também enquadra as ações do presidente como violações à probidade na administração, à dignidade, à honra e ao decoro do cargo, todas previstas como crime de responsabilidade na Constituição e na Lei dos Crimes de Responsabilidade.

O ex-ministro é um dos mais de 300 signatários, dentre integrantes do meio jurídico, artístico e de outras áreas, que ingressaram na semana passada com representação na Procuradoria-Geral da República solicitando que seja oferecida denúncia contra Bolsonaro por crime comum, com base em vários artigos do Código Penal, como o da prevaricação e o de descumprimento de medida sanitária.

O primeiro, previsto no artigo 319, é retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Já o descumprimento de medida sanitária está tipificado no artigo 268: é infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

Embora não seja um pedido de impeachment, essa representação também pode resultar no afastamento do presidente caso o procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi indicado por Bolsonaro, decida denunciar o presidente e a acusação seja avalizada por ao menos dois terços da Câmara (342 de 513 deputados).

Especialistas apontam ainda outros trechos da Constituição e da Lei dos Crimes de Responsabilidade em que Bolsonaro pode ser enquadrado.

Floriano de Azevedo Marques Neto, professor titular do Departamento de Direito do Estado da USP, cita o artigo 9º, item 3, da Lei dos Crimes de Responsabilidade. O texto estabelece como crime o presidente não agir para responsabilizar subordinados pela prática de atos contrários à Constituição.

Segundo ele, o governo não agiu "para que o ministro da Saúde tomasse as medidas necessárias para prover a vacinação ou evitar a escalada da pandemia".

Professora titular do Departamento de Teoria do Direito da UFRJ e avaliadora de programas de doutorado, mestrado e de pesquisa em direito penal no Instituto Max Planck, da Alemanha, Ana Lucia Sabadell diz vislumbrar vários crimes cometidos pelo presidente.

Também em relação à Lei dos Crimes de Responsabilidade ela entende que o presidente poderia ser responsabilizado com base no artigo 4º, incisos 1, 3, 4 e 5. Esses pontos definem como crime de responsabilidade atentados à existência da União, ao exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, à segurança interna do país e à probidade na administração.

"Ele nega a ciência, nega as organizações internacionais que estão cuidando da pandemia no mundo, ele nega todas as medidas preventivas. E atua como? Indicando cloroquina, colocando pessoas incompetentes nos ministérios, que ele sabe que não têm a capacidade para mover a administração pública, fazendo afirmações de que existe tratamento precoce. Ele está também violando o dever de dignidade e decoro do cargo dele, é um problema gravíssimo", afirma.

Diego Werneck, professor associado do Insper e doutor em direito pela Universidade Yale (EUA), defende que pensar em um conjunto de ações não deve ser confundido com ausência de indícios de cometimento de crimes.

"Há uma soma de atos claros e inequívocos que o presidente praticou que não são suficientemente graves, sozinhos, para configurar um crime de responsabilidade, mas cuja soma configura", afirma. "Pelo conjunto das ações e manifestações do presidente Bolsonaro durante a pandemia, me parece claro que ele colocou, deliberadamente, a vida de brasileiros e brasileiras em risco."

O professor de direito Oscar Vilhena Vieira, membro da Comissão Arns de Direitos Humanos, diz que ao fomentar aglomerações, criticar o uso de máscara, incentivar tratamentos ineficazes em detrimento das medidas recomendadas, "boicotar ou não envidar todos os esforços para um amplo programa de vacinação, [Bolsonaro] conspira contra o direito à vida e o direito à saúde".

Em entrevista à Folha de S.Paulo, o ex-ministro do STF Ayres Britto também defendeu o impedimento do presidente, afirmando que a medida cabe a quem dá as costas à Constituição.

Quase 900 ex-alunos da Faculdade de Direito da USP divulgaram carta aberta pedindo o impeachment.

Dos especialistas ouvidos pela reportagem, o único que diz não ver um evidente crime de responsabilidade até o momento é Rubens Beçak, professor associado do Departamento de Direito do Estado da USP.

"Acho que existe até agora um cuidado para não passar o limite daquilo que entra na ilegalidade. O que não quer dizer que não possamos ter uma alteração desse caso, não só pelo ambiente político, mas pelo andar da carruagem. Existe um descumprir e uma orientação completamente equivocada e poderemos ter uma alteração desse quadro muito rapidamente", afirma.

Apesar da legislação, é a vontade política que determina se um presidente deixa o cargo por impeachment ou por denúncia criminal apresentada pela PGR. Em ambos os casos, a palavra final cabe ao Congresso.

Em nota divulgada na terça-feira, a Procuradoria-Geral da República afirmou que "eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competência do Legislativo".

O comunicado, segundo a PGR, foi uma resposta a "segmentos políticos" que "clamam por medidas criminais contra autoridades federais, estaduais e municipais".

Em reação, seis subprocuradores-gerais da República que compõem o Conselho Superior do Ministério Público Federal afirmaram que investigar autoridades é atribuição de quem exerce as funções de procurador-geral da República.

Os subprocuradores também classificaram como "clara afronta à Constituição" a recente declaração de Bolsonaro sobre as Forças Armadas decidirem se o país terá ou não democracia.

No caso do impeachment, há 56 pedidos apresentados até esta terça-feira à Câmara e ainda não analisados (outros 5 foram arquivados), mas cabe ao presidente da Casa decidir monocraticamente se dá ou não andamento a eles.

Rodrigo Maia (DEM-RJ), o atual, decidiu não dar sequência a nenhum, mas afirma que a discussão do impeachment de Bolsonaro será inevitável no futuro. Nenhum dos dois candidatos à sucessão de Maia manifesta, por ora, intenção de deflagrar o processo.

Caso isso ocorra, cabe à Câmara, por ao menos dois terços de seus ocupantes (342 de 513), autorizar a abertura do processo, que só é afastado com o aval do Senado.

Cinco partidos da oposição (Rede, PSB, PT, PC do B e PDT) anunciaram na semana passada que vão ingressar com mais um pedido de impeachment de Bolsonaro, o 62º.

Antes completamente refratários à destituição do presidente, integrantes do centrão já começaram a debater a possibilidade de isso ocorrer. O caldo político pró-impeachment também foi engrossado por membros da esquerda à direita, como o partido Novo e os movimentos Vem Pra Rua e MBL.

Para Eloísa Machado, da FGV, os parlamentares de Brasília estão atrasados.

"Em razão da relutância do Congresso em enfrentar essa questão é que a gente chega a 200 mil mortes no país e a um cenário grave ao ponto de se cogitar que bebês em UTIs fiquem sem oxigênio. É o limite do intolerável. A gente sabe que o impeachment está sujeito a condições políticas, mas a integridade da Constituição exige o afastamento de Jair Bolsonaro."

A reportagem enviou perguntas ao Palácio do Planalto, mas não obteve resposta. Em recente entrevista à TV Bandeirantes, Bolsonaro minimizou a possibilidade de impeachment. "Só Deus me tira daqui. Não existe nada de concreto contra mim. Agora, me tirar da mão grande, não vão me tirar."

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