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PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Antes de escrever o livro que rendeu a ele a segurança da casa própria, o catarinense Marcelo Labes, de 36 anos, percebeu sua vida ruindo. "Deixei tudo desmoronar, como de fato desmoronou. Estava com aluguel e condomínio atrasados, internet quase cortada e contando com a ajuda de muitos amigos", lembra.
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Labes venceu o prêmio São Paulo de literatura do ano passado com "Paraízo-Paraguay", um romance histórico sobre a imigração alemã em Blumenau, sua cidade natal. Com o dinheiro do prêmio, comprou o apartamento onde vive, em Florianópolis.
"Estava sem grana após ter abandonado quase dez anos de serviço público. Pensei 'ou vou de novo entregar currículo para ter um emprego merda ou vou definitivamente escrever e assumir a postura de escritor'", conta.
"Paraízo-Paraguay" é seu romance de estreia. O escritor já havia publicado poemas e foi finalista do Jabuti em 2019 na categoria de poesia com "Enclave". Antes do prêmio São Paulo, entretanto, o romance conquistou o segundo lugar do prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional.
"Chorei por duas horas direto. Até hoje não sei se chorei porque o livro chegou tão longe ou por ter perdido os R$ 30 mil do prêmio. Eu precisava muito da grana", brinca.
Filho de uma doméstica e de um operário, Labes cresceu no bairro Progresso, em Blumenau. Descendente de imigrantes alemães, ele se acostumou a responder que o sobrenome era do "lado pobre" da família. "Em Blumenau, é comum as pessoas se reconhecerem pelo sobrenome. Eu era confundido com os outros Labes", conta.
Na ficção, o bairro Progresso ganhou o nome de Paraízo. "Sempre foi uma piada que o último bairro de Blumenau perto das montanhas, onde tudo chegou tarde, o asfalto, o poste de concreto, se chamasse Progresso. Mas no livro chamo de Paraízo por conta do boteco perto de casa, onde tinha um bosque, e o nome veio dali. Esse lugar existe e está lá", ele conta.
Na obra, a imigração alemã da região é apresentada sem o tom laudatório comum ao folclore. Um dos personagens, o alemão Wilhelm, "é um vagabundo, sem origem e estirpe", explica Labes. "Ele é um ladrão de malas que porventura chega ao Brasil", diz.
Wilhelm é o elo com o Paraguai, que intriga pela presença já no nome do livro. O personagem se passa por um soldado "voluntário da pátria" na sangrenta Guerra do Paraguai, que foi de 1864 a 1870.
"Wilhelm sentou no gramado e pôs a cabeça do menino no colo. O espanto diante da morte: era cinza de rolha queimada no buço do menino, não era barba, não era bigode. Não eram guerreiros, não tinham idade para isso, não eram nada, eram meninos, todos meninos", diz uma passagem do romance sobre o massacre das crianças indígenas pelo Exército do Brasil.
No Paraguai, o Dia das Crianças é comemorado em 16 de agosto, dia do massacre. Labes é interessado pela história dos países da América Latina. "São duas angústias. Uma delas é o fato de que nós, brasileiros, estamos sempre de costas para a América Latina enquanto leitores, escritores e cidadãos. E tinha essa questão da guerra, que eu queria explorar", conta.
O romance também se propõe a colaborar com nuances para a visão que põe o Sul só como um lugar onde habitam racistas e até neonazistas.
"Falo do imigrante pobre, ignorante, que está bem distante da discussão sobre racismo e fascismo. Ele vive lá no gueto do 'Vale Europeu'. Queria falar disso. Cadê o fascismo na pobreza?", diz Labes.
O livro foi publicado pela editora do próprio autor, a Caiaponte. "O nome é por causa da ponte Hercílio Luz. Quando tive a ideia de criar uma editora estava com um amigo embaixo dela. 'Vai ser a Caiaponte', falei."
É pelo selo que também foi publicado "Três Porcos" no ano passado, o segundo romance de Labes. O escritor teme, porém, que a obra fique ofuscada pelo prêmio recebido pelo trabalho ficcional de estreia.
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"Três Porcos" é, nas suas palavras, um livro sobre pedofilia e vingança. Labes é Rafael, o protagonista e narrador, que revisita os abusos sofridos na infância em Blumenau.
Os abusos são cometidos por pessoas próximas da família. Rafael precisa ser deixado aos cuidados de terceiros, enquanto a mãe, uma doméstica, trabalha depois de ser abandonada pelo marido.
"Queria falar dos abusos, da tentativa de experiência homoafetiva, do casamento, que ruiu, e da vingança. O maluco da prosa é que a gente faz um monte de planos e depois os atropela. Minha escrita não é oriunda de oficinas de escrita criativa e sigo muito a intuição", afirma.
No livro, o narrador diz "já não sei como cheguei aqui, embora o caminho tenha sido longo e tortuoso e cansativo e feliz, algumas vezes". "Agora, minha mulher estava para ir embora, eu tinha que lidar com o fato de ter chupado caralhos quando criança e escrever um livro sobre isso", continua a narrativa.
A frase que encerra "Três Porcos" é "burguês filho da puta". "Quando escrevi a última frase pensei que nem dava para ir adiante, não tinha o que dizer depois disso. Mas daí veio o epílogo", conta.
No epílogo, acompanhado de uma fotografia de Labes na infância, o autor escreveu que todos os dias sente vontade de abraçar o menino que foi.
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