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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Uma sequência de gritos quebrou o silêncio do fórum central de Osasco (Grande SP) na tarde do último 26 de fevereiro. Foram tão altos que chegaram a ser ouvidos do lado externo do prédio e provocaram um corre-corre entre alguns seguranças que tentavam entender o que se passava na Vara do Júri.
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Era o ex-PM Victor Cristilder dos Santos que, abraçado ao advogado João Carlos Campanini e ao guarda municipal Sérgio Manhanhã, comemorava, aos berros, a decisão dos jurados de inocentá-los de todas as suspeitas de participação da chacina de Osasco e Barueri, em agosto de 2015, com 17 mortes.
"Eu gritei tanto glória a Deus, gritei tanto", contou Cristilder à reportagem, sobre o momento em que soube que seriam colocados em liberdade, depois de cinco anos de prisão.
Menos de uma semana depois, durante encontro com a reportagem, pouco restava daquele clima de comemoração. Tanto Cristilder quanto Manhanhã ostentavam um semblante marcado pela falta de sorrisos, olhares tristes, revelando as preocupações da vida pós-prisão, entre elas problemas financeiros, de saúde e o medo de represálias por parte de bandidos e policiais.
Cristilder é quem mais demonstrava as sequelas do cárcere. Uma semana após ser colocado em liberdade, conta preferir ficar trancando em casa, evitando contato até com amigos e parentes.
"Estou com trauma. Nem sei se quero voltar à PM. Acordo em casa, suando frio, achando que vão me prender de novo. Sonhos ruins. Não me adaptei ainda. Tenho medo de sair para rua. Fico em casa, na sala, deitado no colchão na sala", diz o ex-PM.Um dos medos, afirma Cristilider, é ser envolvido novamente em um crime que não cometeu, talvez pelas mesmas pessoas que tiveram interesse na condenação dele na chacina de Osasco e Barueri.
"Eu tenho até medo de sofrer represália, por parte da própria Polícia Civil, sei lá de quem, de me colocarem em outro crime. Estou até pensando em colocar um chip debaixo do braço, para saberem onde eu estava verdadeiramente. Eles podem dizer: 'o Cristilder está na rua'. E se eu não tiver um álibi?", afirma ele.
Esse é mesmo medo declarado pelo guarda. Manhanhã diz que sempre tomou cuidado extremo com a segurança pessoal e da família, mas, agora, a preocupação é ainda maior por conta da exposição negativa durante esses cinco anos. "A gente não sabe a reação que pode vir de ambos os lados", disse.
Manhanhã diz não culpar ninguém em particular pelos cinco anos em que ficou preso injustamente, mas, para ele, a Polícia Civil usou muitas mentiras para levá-lo à prisão e influenciar na condenação dele a mais de 100 anos, em 2017, decisão anulada pelo Tribunal de Justiça, a pedido do Ministério Público.
"Eu tenho que ficar atento para possíveis represálias, espero que não haja, com relação a falsas acusações, meu principal medo. O medo é esse hoje em dia. Nunca cometi um crime e não vou cometer agora, mas existe essa preocupação de represálias", disse.
"Com relação aos bandidos, nunca destratei nenhum preso, não destratei ninguém. As prisões que eu fiz foram todas legítimas, então, não tenho... não tinha essa preocupação, mas, hoje em dia, quantos acreditam que eu fui absolvido e, de fato, sou inocente?", diz Manhanhã.
Além dos temores futuros, ambos possuem problemas prementes.
Cristilder precisa se recuperar financeiramente. Ao ser expulso da polícia, perdeu a principal fonte de renda e, durante cinco anos, a família sobreviveu graças a ajuda de amigos da PM, que pagaram até o financiamento do apartamento dele -mensalidade de R$ 1.600.
"Os PMs do meu batalhão me ajudaram muito, porque sabiam da minha índole, quem eu era, sabiam na minha inocência. Então, se uniram de tal forma que não tenho como agradecê-los. No tempo que eu fiquei preso, eles pagaram meu apartamento, as parcelas do apartamento que estou lá hoje. Ajudam minha família com comida. Uns faziam bico no mercado, no açougue, na feira. Nunca faltava nada."
Pela forma como foi absolvido, por ter sido provado que ele não cometeu o crime (não por falta de provas), Cristilder tem chances de ser reintegrado à PM, por determinação judicial, e receber todos os atrasados. Um julgamento assim não tem prazo para ser finalizado e, por isso, terá de arrumar uma fonte de renda.
Outra questão urgente é a reaproximação do filho. Quando Cristilder foi preso, o filho dele tinha 11 anos. "Hoje, meu filho tem 17 anos e é maior do que eu, maior do que o senhor [repórter]. Está sendo um problema. Está calado, distante. Aquele contato de pai e filho se perdeu. Até falei com ele hoje. O pai está de volta. Não foi minha vontade que fiquei fora de casa", afirmou o ex-PM.
"Meu filho foi constrangido várias vezes. Brincando com os meninos nas ruas, as outras mães falavam: 'pois é, você fica andando com filho de presidiário, por isso que está ficando assim.' Isso tudo vai mexendo com o seu psicológico. Não quero nem mais celular. O pessoal está querendo me dar, mas, eu digo que não quero. Por causa de um celular eu fiquei preso. Não quero celular, não quero", disse Cristilder.
Cristilder e Manhanhã foram presos porque, segundo a versão da polícia, eles trocaram emojis (joinhas) pelo celular no dia 13 de agosto, momentos antes do início e após o término dos ataques. Era um código, segundo a acusação, para que Manhanhã afastasse as viaturas da guarda dos alvos daquela noite.
Isso ficou provado no julgamento que não existiu -as viaturas não foram movimentadas, e os horários dos emojis não coincidem com o começo e término dos ataques.A
saúde da mulher de Cristilder também é motivo de preocupação. Amanda faz tratamento contra depressão e síndrome do pânico. "Você não vai preso sozinho. Você vai preso com a família. Os familiares vão junto. Quiçá, até os amigos vão junto", afirmou o ex-PM.
Manhanhã não foi demitido. Pelo contrário. Não só foi mantido no cargo, como teve apoio da guarda durante todos os anos de prisão. Os amigos foram, por exemplo, até o distrito policial onde ele estava preso na capital para instalar luz e chuveiro, já que a direção da unidade não tinha recursos para consertar.
"Meus amigos da guarda me ajudaram muito, tanto com arrecadação de dinheiro e venda de rifas para custear o advogado e manter as despesas de casa. Recebi muitas cartas e apoio moral. Minha esposa sempre foi assistida pela administração e muitos amigos da guarda", disse ele.
O guarda de Barueri tenta cuidar da própria saúde. Um dos problemas herdados na prisão foi um vitiligo, que classifica como emocional e, por isso, está com manchas brancas pelo corpo. Também perdeu cabelos com uma alopecia, resultado de forte ansiedade que preferiu enfrentar sem a ajuda de remédios.
"Evitei tomar medicação para controlar a ansiedade porque muitos presos, com culpa ou sem culpa, não estou aqui para julgar ninguém, vivem a base do remédio. Quando eu vi nas celas algumas pessoas dormindo praticamente 24 horas, eu pensei: 'não posso entrar nessa condição'."
Quanto ao futuro, Manhanhã disse ainda analisar as medidas judiciais que pretende tomar, mas é certo que buscará a lei do esquecimento -para que seu nome não fique vinculado eternamente à chacina, crime que classifica como "atrocidade". "Sinto muito pelas famílias, mas eu não posso carregar esse peso. Que a polícia continue investigando esse crime, e que possam prender, de fato, os verdadeiros culpados."
Cristilder também não sabe como será seu futuro, quem pretende processar, mas se diz grato a Deus pela nova oportunidade. "Depois de tudo o que passei, para mim, eu não tenho direito de escolher nada não. Para mim, hoje, tudo é lucro, diante do que passei. Então, tudo que vier é lucro. Deus é quem sabe", disse.
Ambos têm, porém, uma certeza: eles serão amigos daqui para frente. "A gente não tem amizade. Nós conversamos um pouco durante o julgamento, vamos ter que desenvolver o vínculo agora. Nem sei onde ele mora, mas vamos ter uma amizade agora", finaliza Cristilder.