© Amazônia tem desmatamento recorde em outubro
Um arcabouço legal que incentiva a grilagem e o desmatamento de florestas públicas na Amazônia, gerido por órgãos estaduais desestruturados e pouco transparentes.
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Essa é a imagem que fica após a leitura do relatório "Dez Fatos Essenciais sobre Regularização Fundiária", do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), resultado de quatro anos de levantamento da legislação fundiária dos nove estados da Amazônia Legal e do governo federal.
Somados, esses governos estaduais são responsáveis pelo gestão de 86,1 milhões de hectares, ou 17% da Amazônia Legal -área pouco maior que o Chile. Uma importância que não é levada em conta no debate sobre as causas do desmatamento, segundo a pesquisadora paraense Brenda Brito, 38, coordenadora do estudo.
"Digamos que o projeto de lei no Congresso fosse muito bom. Não é o caso, mas, se fosse, não resolveria. Porque ainda haveria, nos estados, uma legislação dizendo que não tem limite temporal para ocupar terra pública estadual, que alguém pode desmatar sem apresentar um termo de recuperação", disse Brito em entrevista à Folha.
Brenda Brito é pesquisadora associada do Imazon, em Belém, bacharel em direito pela Universidade Federal do Pará e mestre e doutora em ciência do direito pela Universidade Stanford (EUA).PERGUNTA - De que forma a legislação fundiária, tanto as estaduais quanto a federal, explica o desmatamento na Amazônia?
BRENDA BRITO - Há muitas brechas para que as pessoas que ocupam e desmatam recebam os títulos, principalmente por meio das legislações estaduais. E, quando não existe essa brecha, a lei acaba mudando. E o caso dessa tentativa atual no Congresso.
Se alguém está ocupando por um tempo mínimo -quando se pede o tempo mínimo- e preenche outros requisitos, vai ser titulado. É quase um direito, mas, na prática, a pessoa está ocupando e desmatando terra pública. Não há barreiras para impedir essa conduta.P. - Levantamento recente mostrou que nenhuma Assembleia Legislativa da Amazônia tem uma frente parlamentar ambiental. Por outro lado, o presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia de Rondônia foi investigado por grilar área protegida. Como aprimorar a legislação nessa realidade?
BB - É um dos maiores desafios. Fora a alteração federal, houve outras seis alterações estaduais. Isso está acontecendo, e as pessoas não percebem. Há a necessidade de levar esse tema para o debate público, de chamar a atenção. Todos falam da regularização fundiária, mas o foco é federal, por vários motivos. É preciso olhar para os estados.
Digamos que o projeto de lei no Congresso fosse muito bom. Não é o caso, mas, se fosse, não resolveria. Porque ainda haveria, nos estados, uma legislação dizendo que não tem limite temporal para ocupar terra pública estadual, que alguém pode desmatar sem apresentar um termo de recuperação.
No levantamento que fizemos, a maior parte dessa área que não tem informação de destinação fundiária é estadual. Então precisamos trazer essa discussão para o debate que está acontecendo nacionalmente. Se depender só das Assembleias, não vai andar.P. - O estudo identificou preços muito baixos do Valor da Terra Nua (VTN) cobrados pelos estados para fazer a regularização fundiária. Qual é o peso disso na hora de "investir" no desmatamento ilegal?
BB - Colocamos no relatório o VTN básico, sobre o qual serão aplicados os descontos. Cada estado, incluindo o governo federal, ainda pode diminuir o valor. Mesmo o VTN é um valor relativamente alto em relação ao que pode ser cobrado na prática.
Os governos argumentam que não podem cobrar um valor alto porque aquilo é para facilitar o produtor a ter título, acessar o crédito, investir, produzir e conservar. Seria, portanto, um estímulo.
A nossa leitura é a de que não há nenhuma garantia de que essa pessoa vá investir de forma sustentável. Nada, na titulação, a está levando para isso. Ela pode muito bem pegar o título, o crédito, desmatar e produzir, mas não de forma sustentável, como expandir pasto ao invés de investir em intensificação.Mesmo quando há alguma exigência no título com respeito à lei ambiental, observamos que não há monitoramento para saber se tais cláusulas são respeitadas. Tampouco há retomada do imóvel nos casos em que houve descumprimento.P. - Historicamente, o governo federal foi um contrapeso. Qual o peso das promessas do governo Jair Bolsonaro para regularizar essas grilagens e não demarcar terras indígenas e quilombolas no aumento recente do desmatamento?
BB - Desde a última alteração da lei, no governo Michel Temer (MDB), houve um aumento no desmatamento mais intenso a partir de 2017. No atual governo, isso acabou explodindo. E muito do discurso vai na linha de não reconhecer áreas que legalmente têm prioridade, terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação, e avançar com a regularização fundiária.
Quando veio a Medida Provisória (MP) 910, isso ficou mais forte porque havia a possibilidade de estender a regularização até um ano antes, o que seria 2018. Foi um movimento bem mais ousado de flexibilização.
Por mais que a MP tenha caducado, a impressão que fica é a de que Bolsonaro vai regularizar, vai mudar a lei. E há dois projetos de lei no Congresso, com brechas que considero extremamente complicadas do ponto de vista do marco temporal. A expectativa já foi criada.
Esse é o problema. Se o discurso fosse de aumentar a eficiência da privatização com base na legislação vigente, seria legítimo, desde que não se comece a mudar a lei para permitir a regularização de ocupações recentes. Porque não tem fim: toda vez que o prazo muda, provoca uma nova onda de ocupação, aí o prazo muda de novo. É cíclico.
No caso dos estados, está em aberto, não tem data. Mesmo os que estão mudando a lei estão deixando passar a oportunidade de colocar o marco temporal.
Apoiar esse modelo de regularização que não tem prazo para ocupação ou que muda toda hora acaba sendo apoiar a continuidade da ocupação e do desmatamento.P. - O estudo defende criar unidades de conservação e regularizar terras indígenas e quilombolas. É a principal medida para conter o desmatamento?
BB - De acordo com levantamentos do próprio Ministério do Meio Ambiente, já existia prioridade para conservação dentro da área onde não se tem informação. Tem uma fatia substancial, mas, acima de tudo, queremos levantar a questão de que, hoje, a decisão sobre uma titulação está muito dentro do órgão fundiário, que não se comunica com mais ninguém.
Não tem como o órgão fundiário saber se é prioritário ou não, porque isso não está no regulamento. Muitas vezes, não está sequer na lei estadual. Esse tipo de checagem precisa ser introduzido.
O CAOS FUNDIÁRIO DA AMAZÔNIA LEGAL EM NOVE FATOS1. 28,5% da região amazônica não possui informação pública sobre destinação fundiáriaO resultado é que 40% do desmatamento entre 2013 e 2020 ocorreu nessa área com indefinição.
2. Governos estaduais são os principais responsáveis pela área sem definição fundiária. Os nove governos estaduais da Amazônia Legal têm a responsabilidade de decidir o destino de 86,1 milhões de hectares, área pouco maior do que o Chile, mas apenas 10% desse território foi registrado em cartório, o primeiro passo para a destinação de área.
3. 43% do território sem definição fundiária possui prioridade para conservaçãoSão 63 milhões de hectares (tamanho comparável a MG) que possuem prioridade para conservação, segundo levantamento do Ministério do Meio Ambiente de 2018.
4. A responsabilidade pela regularização fundiária está pulverizada entre 22 órgãos estaduais e federaisEsses órgãos têm diferentes atribuições, mas o trabalho é feito de forma descoordenada. O país não possui sequer um cadastro único ou integrado de terras.
5. A maioria das leis estaduais incentiva a invasão de terras públicasA legislação parte do pressuposto de que a terra pública está disponível para apropriação, estimulando invasões e facilitando a legalização da grilagem de terra.
6. Nenhum estado proíbe a titulação de áreas desmatadas ilegalmenteAlém disso, a maioria não exige compromisso de recuperação de passivo ambiental antes da titulação
7. A população brasileira subsidia a privatização de terras na AmazôniaOs governos estaduais cobram pela terra, em média, 15% do valor de mercado, e o governo federal, 26%. O menor Valor de Terra Nua (VTN) é Tocantins: em média, apenas R$ 4 por hectare.
8. Falta transparência e controle social sobre a privatização do patrimônio público fundiárioEm média, os órgãos estaduais de terra divulgaram apenas 22% das informações de divulgação obrigatória até 2018. O resultado é que a sociedade não sabe quais áreas públicas estão sendo privatizadas e quem recebe os títulos de terra.
9. Sete leis fundiárias mudaram entre 2017 e 2020 para facilitar a privatização de terras públicasNo Pará, por exemplo, uma nova lei de 2019, aprovada em regime de urgência, abriu caminho para a privatização de florestas estaduais ocupadas ilegalmente, entre outras mudanças.Fonte: Imazon.