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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quase dois anos após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) quebrar uma tradição consolidada desde 2003 e indicar para o comando da Procuradoria-Geral da República um nome que não constava na lista tríplice votada por membros do Ministério Público Federal, a categoria resolveu dobrar a aposta.
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Na última semana, a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) lançou um calendário prévio com datas para inscrição de candidaturas, realização de debates e votação de uma nova lista tríplice a ser apresentada ao presidente Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, renovou críticas à forma como o atual PGR, Augusto Aras, foi indicado. A lista tríplice, disse a entidade em nota, escolhe líderes "que podem conduzir a instituição de forma verdadeiramente autônoma e independente, conforme estabelecido pela Constituição Federal".
Apesar de reconhecerem as dificuldades em emplacar um nome dessa lista a um presidente que nunca se comprometeu a segui-la, integrantes do Ministério Público Federal consultados pela Folha acreditam que a manutenção da lista é importante e deve ser reforçada.
Primeiro porque parte do órgão antagoniza a atitudes da gestão aras Aras e considera que ele tem feito gestos de aproximação ao governo Bolsonaro, muitas vezes interpretados como tentativas de conseguir uma indicação ao STF (Supremo Tribunal Federal).
Em julho, uma cadeira no Supremo ficará vaga com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio, que completará a idade limite de 75 anos. Já em setembro vence o atual mandato de Aras, mas esse pode ser reconduzido ao cargo pelo presidente.
Além disso, procuradores entendem que é necessário demonstrar ao Congresso que uma parte significativa do Ministério Público Federal quer a aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que obrigue o presidente a indicar o procurador-geral da República a partir de uma lista tríplice da categoria.
Embora não seja prevista em lei, de 2003 a 2017 todos os presidentes indicaram para o posto um dos três nomes mais votados entre seus pares. Após essa indicação, o nome deve ser aprovado pelo Senado. Bolsonaro quebrou a tradição da escolha pela lista da ANPR.
"A lista tríplice deixa que essa escolha [do PGR] não seja feita apenas em conversas reservadas, em gabinetes fechados em Brasília, e constrói um processo público e transparente", disse o presidente da associação de procuradores, Fábio George Cruz da Nóbrega.
"Há dois anos, o presidente da República chegou a mencionar publicamente que queria encontrar um procurador-geral que fosse a dama num tabuleiro de xadrez em que ele seria um rei, demonstrando que não compreendia bem como deveriam funcionar as instituições, particularmente o Ministério Público, numa República", diz ele.
"Nós não temos a função de defender o governo, muito pelo contrário. Nossa função é de fiscalizar o governo e, se for necessário, investigar o próprio presidente da República."
O presidente da associação aponta que o próprio presidente vem respeitando e validando listas para outros cargos, como o de defensor público-geral e os de reitores de universidades, mas não para a autoridade que tem atribuição de investigá-lo e acusá-lo criminalmente.
Fábio George, que deixa o comando da associação, será substituído a partir de 6 maio pelo procurador da República Ubiratan Cazetta, que, segundo colegas, é próximo do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot (2013-2017). Ele foi eleito em chapa única no último dia 5, por 542 votos.
Cazetta comandará o processo de discussão e apresentação da nova lista tríplice, cuja eleição deve acontecer em 22 de junho e a entrega ao presidente até o dia 2 de julho.
Entre o final de maio e o início de julho, deverão ocorrer os debates entre os candidatos cujo modelo ainda não foi definido, mas deve ser adaptado devido à pandemia.
Em 2019, houve seis debates presenciais, dois na região Sudeste (Rio e São Paulo) e um em cada uma das outras regiões do país. Eram dez candidatos.
Compuseram a lista os subprocuradores-gerais Mario Bonsaglia e Luiza Frischeisen e o procurador regional Blal Dalloul. Os três acham importante que o processo aconteça novamente esse ano.
Bonsaglia afirma apesar do rompimento da tradição em 2019, "a ideia permanece de pé, sendo plausível que, em algum momento, a lista tríplice volte a ser considerada pelo chefe do Executivo" ou que vire emenda à Constituição pelo Legislativo. "O que encontra-se em jogo está longe de ser um assunto corporativo, mas, sim, matéria de interesse público", afirma.
A lista tríplice, diz Bonsaglia, reforça "o caráter de instituição independente que a Constituição quis conferir ao Ministério Público" para que o órgão possa cumprir as incumbências previstas pela própria Constituição, de "defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis".
Blal Dalloul, terceiro lugar em 2019, afirma que a ANPR está "coberta de razões". Para ele, a lista é um sinal de respeito ao princípio democrático e uma mensagem clara ao presidente sobre a natureza institucional do Ministério Público.
Dalloul diz que o cenário adverso, com um presidente que "ignorou solenemente a lista tríplice em 2019, tendo optado por desprezar um costume constitucional de décadas para fazer escolha segundo seus critérios pessoais de gosto e afinidade", não deve impedir a apresentação da lista.
Segundo ele, é importante que a lista seja posta à disposição inclusive para que "sua Excelência [Bolsonaro] tenha oportunidade de evoluir também ou pelo menos nessa questão, quem sabe, num marco ou na continuidade de uma série de marcos corretos que tanto bem fariam ao Brasil".
O clima esse ano, no entanto, é bem diferente do de 2019. À época, ainda havia expectativa de que o presidente indicasse alguém que integrava a lista tríplice. O então ministro Sergio Moro era simpático à possibilidade.
Por fora, além de Aras, tentava se viabilizar em 2019 para a recondução à PGR a então procuradora-geral da República Raquel Dodge. Ela ocupou o cargo por dois anos, após indicação do ex-presidente Michel Temer em 2017. Dodge havia ficado em segundo lugar na lista tríplice da ANPR.
Quando Aras foi indicado por Bolsonaro, causou reações e protestos no Ministério Público Federal. Em diversas unidades do Brasil, procuradores fizeram atos em que empunhavam cartazes dizendo que "lista tríplice para PGR é a independência do MPF levada a sério". Prometeram boicotar cargos na gestão Aras.