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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os países desenvolvidos e as grandes indústrias farmacêuticas devem fazer licenciamento voluntário e transferência de tecnologia de vacinas contra Covid-19 para que nações em desenvolvimento possam começar a fabricar os imunizantes. Caso isso não ocorra nos próximos três meses, deve ser determinada suspensão imediata das patentes reguladas pelo Acordo Trips da Organização Mundial de Comércio (OMC).
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Essas são recomendações do relatório final do Painel Independente para Prevenção e Resposta, órgão independente estabelecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para avaliar a reação à pandemia de Covid-19 e as lições aprendidas.
No relatório final, divulgado nesta quarta-feira (12), o painel afirma também que os países ricos como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, que compraram muito mais vacinas do que precisam para imunizar suas populações, devem direcionar ao consórcio Covax, com urgência, 1 bilhão de doses até setembro de 2021.
O Covax é o consórcio formado para distribuir vacinas para países de renda média e baixa que não conseguiram fazer acordos para comprar um número suficiente de imunizantes. O consórcio já admitiu a impossibilidade de cumprir a meta de distribuir 2,4 bilhões de doses neste ano por falta de acesso.
O painel recomenda também que governos nacionais adotem imediatamente medidas de saúde pública com eficácia contra a Covid comprovadas pela ciência, como distanciamento social e uso de máscaras, porque a vacinação sozinha não irá derrotar a pandemia sozinha.
Para que as medidas de saúde pública funcionem, diz o relatório, é preciso oferecer auxílio financeiro para as populações vulneráveis, que perderam o emprego durante a crise econômica provocada pela pandemia ou não podem trabalhar por causa do distanciamento social.
"Em vários países, as medidas de saúde pública foram implementadas, mas as pessoas tinham que sair de casa para trabalhar porque não tinham auxílio financeiro", disse à Folha o ex-ministro de Finanças da Colômbia Mauricio Cárdenas, que é um dos 13 membros do Painel.
Segundo Cárdenas, o Brasil foi extremamente bem-sucedido no auxílio econômico durante a pandemia, com um programa de transferência de recursos (auxílio emergencial) que atingiu "uma quantidade impressionante de pessoas". "No entanto, se um país ajuda financeiramente a população, mas ignora os aspectos de saúde pública, não vai resolver o problema", disse.
Segundo Cárdenas, o governo do Brasil "reagiu à pandemia de forma lenta, ignorou evidências científicas e demorou para perceber que a doença era grave". "As consequências são visíveis, em números de casos e de mortes", disse.
Segundo o relatório, os países bem-sucedidos no enfrentamento da pandemia são aqueles que não negaram a gravidade da doença, tinham lideranças que coordenaram os esforços com governos locais, usaram evidências científicas, reagiram imediatamente, e, além disso, adotaram instrumentos fiscais para permitir que a população respeitasse as medidas de saúde pública. Exemplos positivos citados pelo relatório e por Cárdenas são o Uruguai, "uma exceção na América Latina", Coreia do Sul, Singapura, China, Nova Zelândia, Vietnã e Tailândia.
Já os países que tiveram péssimos resultados no enfrentamento da pandemia usaram "abordagens descoordenadas que desvalorizaram a ciência, negaram o impacto da pandemia, atrasaram na implementação de medidas, e permitiram que a desconfiança minasse os esforços".
"O negacionismo das evidências científicas foi reforçado por lideranças que não assumiram responsabilidade e não desenvolveram estratégias coerentes para evitar a disseminação da doença. Líderes que se mostraram céticos ou desdenharam das evidências científicas corroeram a confiança e o cumprimento de medidas de saúde pública pela população", diz o relatório, ao descrever os países que fracassaram no combate ao coronavírus.
Indagado sobre quais países seriam exemplos negativos no enfrentamento da Covid-19, Cárdenas afirmou: "Todo mundo sabe. E a América Latina tem um número desproporcional de maus exemplos (no combate à Covid)."
O Brasil é citado em anexo do relatório, ao lado de Nicarágua, Estados Unidos e Reino Unido, como um dos países que "não adotou medidas eficientes de controle, como distanciamento social, isolamento e quarentena", o que teria se refletido em "um aumento rápido no número de casos e alta taxa de mortalidade."
Os autores do relatório alertam que só a vacinação não vai acabar com esta pandemia. "Ela precisa ser combinada com testagem, rastreamento de infectados, isolamento, quarentena, uso de máscara, distanciamento social, higienização das mãos e comunicação efetiva com o público", afirma o relatório.
O texto destaca que a desigualdade no acesso a vacinas é um dos maiores desafios atuais. "Países de alta renda têm doses suficientes para cobrir 200% de suas populações, que obtiveram por meio de acordos bilaterais com as farmacêuticas. Nos países mais pobres, no momento em que esse relatório foi finalizado, menos de 1% da população havia recebido ao menos uma dose de vacina."
De acordo com o relatório, a falta de acesso a vacinas ameaça minar os esforços globais para conter a pandemia. "Quanto mais rápido vacinarmos, menor a probabilidade de surgirem mais variantes."
Além disso, o painel afirma ser necessário desenvolver capacidade de produzir vacinas na América Latina e na África -ainda mais com a possibilidade de a Covid-19 se tornar endêmica e requerer vacinações anuais.
A Índia e a África do Sul apresentaram, no ano passado, uma proposta na OMC que previa uma suspensão de patentes relacionadas à Covid-19. O Brasil, ao lado de EUA e outros países desenvolvidos, havia se declarado contrário à proposta. No entanto, os EUA mudaram de posicionamento e anunciaram recentemente que apoiam uma renúncia temporária às patentes. Índia e África do Sul vão apresentar uma nova versão de sua proposta e o governo brasileiro se mostrou disposto a negociar.
A indústria farmacêutica e países que se opõem à proposta argumentam que não adianta apenas suspender patentes, porque os países não vão conseguir produzir as vacinas, que demandam alta tecnologia.
"Mesmo que demore um ou dois anos para começarem a produzir a vacina, é um esforço que vale a pena; não sabemos o que vai acontecer com as mutações do vírus, precisamos ser capazes de produzir vacinas caso a doença se torne endêmica e precisemos vacinar todos os anos", diz Cárdenas. "Não temos tempo a perder, precisamos começar agora, mesmo que vá levar anos."
A ideia do painel é que OMC e OMS se reúnam com os países e empresas produtores de vacinas de Covid para tentar fechar acordos para licença voluntária. Caso não consigam, seria determinada a suspensão de patentes.
As farmacêuticas afirmam que a suspensão de patentes reduziria o incentivo para as empresas investirem em pesquisa, o que, consequentemente, poderia levar a uma menor quantidade de novos medicamentos e vacinas no futuro.
"É sempre o argumento das farmacêuticas. Mas hoje qualquer pessoa que investiu no desenvolvimento das vacinas de Covid já lucrou com elas. O custo inicial certamente já foi coberto", diz o membro do painel. "Não vejo as farmacêuticas perdendo dinheiro com essa decisão, mas sei que vão resistir. Isso é uma exceção, uma pandemia, não ocorrerá com vacinas contra outras doenças."
Segundo Cárdenas, para um país como Brasil, o licenciamento voluntário é particularmente importante. "O Brasil tem indústria farmacêutica, tem os laboratórios e, com a devida assistência e acesso a tecnologia, pode produzir vacinas contra Covid."
O painel, liderado por Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, e Ellen Johnson Sirleaf, ex-presidente da Libéria, passou os últimos oito meses examinando informações para determinar como um surto se transformou em uma pandemia e como foram as respostas nacionais e global. Chegou à conclusão de que a OMS demorou demais para declarar emergência de saúde pública e que a entidade e vários países não implementaram medidas de contenção da doença na velocidade necessária.
Contribuiu para isso a falta de transparência do governo da China, onde os primeiros casos de Covid foram registrados em dezembro de 2019, mas só foram informados oficialmente às autoridades sanitárias internacionais no início de janeiro. Foi só em 20 de janeiro de 2020 que a China permitiu que uma missão da OMS fosse a Wuhan.
"Se tivéssemos reagido mais rápido, se a China tivesse sido mais transparente no início, a OMS tivesse declarado emergência algumas semanas antes, suspendido viagens internacionais, recomendado uso de máscaras antes, teríamos salvado milhões de vidas", disse à Folha Cárdenas. Fevereiro, diz o relatório, foi um mês perdido. Já havia sido declarada a emergência, mas a maioria dos países não adotou medidas para evitar a disseminação do coronavírus.
O painel também recomenda uma série de medidas de médio prazo para que o sistema global de alerta para epidemias seja mais ágil, os países tenham planos de contingência, haja mais recursos e mais independência para a OMS e fundos para pesquisa de novos medicamentos e vacinas.
"Nossa mensagem é clara e simples: o sistema atual não conseguiu nos proteger da pandemia de Covid-19. E se nós não mudarmos o sistema agora, ele não vai nos proteger da próxima ameaça de pandemia, que pode acontecer a qualquer momento", diz a co-líder do painel, Ellen Johnson Sirleaf.
Principais recomendações do painel Adotar medidas de saúde pública de forma sistemática e rigorosa em todos os países. Todas as nações devem ter uma estratégia baseada em evidências científicas para reduzir a disseminação da Covid-19, acordada no mais alto nível de governo. Países de alta renda que têm em estoque ou garantidas vacinas suficientes para cobertura de suas populações devem fornecer aos 92 países de renda baixa e média participantes do consórcio Covax 1 bilhão de doses até setembro de 2021.
Os principais países e indústrias produtores de vacinas devem se reunir, em coordenação com a OMS e a OMC, para concordar em licenciar de forma voluntária suas vacinas e transferir tecnologia. Se isso não ocorrer dentro de três meses, deve ser determinada a suspensão imediata das patentes reguladas pelo Acordo Trips da Organização Mundial de Comércio (OMC). O G7 deve se comprometer a doar imediatamente 60% dos US$19 bilhões necessários para o ACT-A, fundo para fornecer vacinas, testes e medicamentos para países de menor renda.