Talibã mudou em 20 anos e é preciso negociar, diz ex-ministra britânica

Uma das faces mais carismáticas do "novo trabalhismo" era a deputada Clare Short, que ganhou uma função criada sob medida para acomodar seu entusiasmo: secretária de Desenvolvimento Internacional.

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Mundo CLARE-SHORT 31/08/21 POR Folhapress

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando o trabalhista Tony Blair venceu de forma arrasadora a eleição britânica de 1997, tornando-se premiê após 18 anos de governos conservadores, montou um gabinete repleto de figuras que exalavam energia e prometiam uma nova era na política.

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Uma das faces mais carismáticas do "novo trabalhismo" era a deputada Clare Short, que ganhou uma função criada sob medida para acomodar seu entusiasmo: secretária de Desenvolvimento Internacional.

À frente do novo departamento –equivalente a ministério–, ela se tornou porta-voz de uma ambiciosa política externa que se propunha a ser mais idealista e solidária. Conseguiu aumentar o orçamento para assistência internacional e deu especial atenção a países africanos e asiáticos.

Short estava nesta posição nos atentados de 11 de setembro de 2001 e participou da definição da estratégia do governo Blair nos ataques ao Talibã, insistindo para que o processo não contemplasse apenas a parte militar, mas também projetos de desenvolvimento.

Conhecida pelo temperamento forte, ela rompeu com seu chefe dois anos depois, inconformada com a invasão do Iraque, hoje considerada o maior erro político cometido por Blair.

Short, 75, deixou de ser deputada em 2010, após 30 anos no Parlamento britânico. Hoje, dedica-se a projetos em instituições multilaterais. Por email, a ex-ministra diz que é preciso dar um crédito de confiança ao Talibã e negociar com o grupo fundamentalista, ao menos num primeiro momento.

Afirma também que a humilhação sofrida pelos EUA mostra que o país não aprendeu nada com fiascos anteriores. "Não há dúvida de que o Afeganistão é um fracasso humilhante. Para os EUA, vem após Vietnã e Iraque. A pergunta é: os EUA podem aprender? É extraordinário que não tenham conseguido."*Pergunta - A sra. era secretária de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido em 11 de setembro de 2001 e durante o ataque ao Talibã. Como se sente com a volta do grupo ao poder?

Clare Short - Fiquei no governo até 2003, quando renunciei devido à invasão do Iraque. Desde então já estava claro que a ocupação do Afeganistão havia fracassado. O Talibã progressivamente tomava mais território, e metade da população dependia de ajuda humanitária. O instinto inicial dos EUA [ao atacar o Afeganistão] foi de vingança, então seus motivos não foram claros desde o começo. A invasão foi um sucesso, e o Talibã derreteu após pouca luta. Hoje sabemos que o grupo quis negociar um acordo, mas os EUA não queriam conversar com eles. Este foi o grande erro [dos americanos]. Deveriam ter declarado vitória e retirado os militares.

Apoio ao desenvolvimento deveria então ter sido providenciado para melhorar a vida das pessoas. Indo mais atrás, foi a política americana, com a ajuda dos sauditas, que instigou movimentos islâmicos e senhores da guerra a derrubar o governo progressista apoiado pelos soviéticos, para arrastar a União Soviética a uma situação do tipo Vietnã.

Que tipo de ameaça o retorno do Talibã representa para os direitos humanos no Afeganistão, especialmente das mulheres?

CS - O Talibã de agora é diferente do que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Eles viajaram para fora e conheceram outros países muçulmanos. O Afeganistão também mudou em 20 anos, com mais pessoas educadas, incluindo meninas, e mulheres que trabalham em todos os níveis. O Talibã prometeu que estes direitos para meninas e mulheres vão continuar. O tempo dirá, mas seria inteligente para a comunidade internacional engajar-se com eles, pois precisam de apoio econômico, caso contrário haverá um colapso catastrófico. Esta necessidade de ajuda significa influência para fazer o Talibã seguir normas internacionais.

A sra. acredita no Talibã quando promete ser mais moderado dessa vez?

CS - É preciso esperar para ver se as promessas de respeitar mulheres e meninas e governar de forma inclusiva serão honradas. Mas é muito mais provável que isso aconteça se todas as partes da comunidade internacional se engajarem com eles.

Como a sra. avalia o papel dos países ocidentais na ajuda ao Afeganistão desde 2001? Foi suficiente para melhorar a vida das pessoas?

CS - Houve alguns avanços significativos na vida de afegãos comuns. Mas também houve corrupção terrível, guerra e morte intermináveis. Não há dúvida de que o Afeganistão é um fracasso humilhante para EUA, Reino Unido e Otan [aliança militar ocidental]. Para os EUA, vem após os fracassos no Vietnã e no Iraque. A pergunta é: os EUA podem aprender? É extraordinário que não tenham conseguido. Os militares americanos continuaram a apresentar relatórios otimistas para o Congresso sobre o progresso no Afeganistão, e na verdade eram totalmente enganosos e escondiam os problemas. Para o Reino Unido, que agora deixou a União Europeia e quer se agarrar mais fortemente à relação com os EUA, cria-se um problema quando os americanos fracassam de forma tão grande.

O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, com quem a sra. trabalhou, chamou a decisão dos EUA de sair do Afeganistão de "imbecil". A sra. concorda?

CS - Os comentários de Tony Blair sobre a crise afegã foram extremamente tolos e expressos de forma rude. A lógica de sua posição é que os EUA deveriam permanecer no Afeganistão indefinidamente até haver a derrota completa. Não acredito que ele seja bem-vindo à Casa Branca novamente.O presidente Joe Biden disse que a missão no Afeganistão nunca foi de construção de uma nação, ou de criar instituições sólidas, e sim para remover a ameaça de novos ataques terroristas.

A sra. enxerga esses objetivos como excludentes?

CS - A confusão sobre o que os EUA estavam tentando alcançar era uma parte grande do problema. Tentar promover desenvolvimento num país tão complicado quanto o Afeganistão por meios militares era algo que estava destinado ao fracasso. Os EUA gastaram US$ 1 trilhão, mas a maior parte não chegou às pessoas.

A sra. teme que o jihadismo global seja encorajado pela decisão de sair do Afeganistão, especialmente após as imagens de caos no aeroporto de Cabul?

CS - Não há dúvida de que será bastante impulsionado pelo fracasso dos EUA no Afeganistão.

Que tipo de assistência o Ocidente pode oferecer a afegãos comuns após estes eventos?

CS - Há uma crise humanitária e uma seca terrível gerando necessidades para metade da população do Afeganistão. O primeiro ponto é garantir apoio suficiente e que todas as pessoas necessitadas sejam alcançadas. Além disso, instituições multilaterais devem estar disponíveis para se engajar com o Talibã no longo prazo para que institua um sistema de governança inclusiva que respeite os direitos das pessoas.

Que tipo de papel a sra. vê para ONU e ONGs?

CS - Serão chave em tentar assegurar a melhor transição possível para o governo do Talibã. Os EUA, o Reino Unido e outros que estiveram envolvidos no esforço militar no Afeganistão devem oferecer apoio generoso, por meio da ONU e de outras agências aceitáveis.

As ONGs são importantes para providenciar alívio humanitário. Mas é fundamental que esforços sejam feitos para incluir pessoas do Afeganistão na entrega e na distribuição da ajuda, em vez de que estrangeiros venham e depois saiam quando a crise imediata terminar e a capacidade local tiver sido enfraquecida, em vez de fortalecida.*Raio-x - Clare Short, 75

Graduada em ciência política pela Universidade de Leeds, foi deputada pelo Partido Trabalhista (1983-2006) e independente (2006-10); além de secretária de Desenvolvimento Internacional (1997-2003) e presidente da Iniciativa para a Transparência na Indústria Extrativa (2011-16). Hoje preside o conselho da Aliança das Cidades.

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