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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Dezoito dias após tomar o poder e duas noites após o fim da retirada americana do Afeganistão, o Talibã recebeu nesta quarta (1º) a primeira ajuda internacional.
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Um avião do Qatar chegou a Cabul, o primeiro pouso desde que um cargueiro C-17 decolou às 23h59 de segunda (30) com os derradeiros americanos a bordo. Ele trouxe técnicos que vão trabalhar para reabrir o aeroporto da cidade.
Palco das cenas mais dramáticas da evacuação americana, como afegãos caindo de um C-17 em voo e o mais mortífero atentado na capital durante os 20 anos de ocupação ocidental, o Aeroporto Internacional Hamid Karzai pode voltar a operar voos comerciais até o fim da semana.
Essa é a expectativa de grupos de ativistas de direitos humanos, ansiosos para ajudar as milhares de pessoas que ficaram a para trás na retirada, notadamente afegãos –dos 122 mil que conseguiram fugir, cerca de 100 mil eram cidadãos do país que trabalharam para forças ocidentais e temiam represálias.
"Como mediadores neutros e justos, conquistamos confiança", afirmou o chanceler qatari, Mohammed bin Aderraham al Thani, à mídia estatal do emirado. Durante anos, Doha sediou os contatos diplomáticos entre talibãs e americanos, culminando no acordo de paz de 2020 com o governo Donald Trump.
Os termos do acerto foram rasgados pelos fundamentalistas, que não negociaram com o governo de Ashraf Ghani, e sim o derrubaram.
Na terça (31), o presidente Joe Biden defendeu a manutenção da retirada, sem admitir seu caráter caótico e com mais de 200 mortes, alegando que a opção seria "mais uma década no Afeganistão".
Os qataris são os primeiros a chegar. A China, por sua vez, já deu sinais claros de que poderá reconhecer o governo do Talibã, assim como a Rússia. Com interesses de estabilidade regional e, no caso de Pequim, algum foco econômico, ambas as potências querem ocupar o vácuo dos rivais americanos.
O Talibã já pediu apoio formal aos chineses. Embora países ocidentais como Alemanha digam que será necessário dialogar com os fundamentalistas, o tom geral é de hostilidade. O líder talibã Anas Haqqani, figura de proa hoje, tripudiou da derrota americana em postagens no Twitter.
Resta saber qual governo será formado e, principalmente, como ele funcionará. O Talibã disse repetidas vezes que não emularia seu brutal simulacro de califado medieval vigente de 1996 a 2001, quando foi derrubado pelos EUA por ter apoiado os terroristas que praticaram os atentados do 11 de Setembro.
Naquela encarnação, apenas os aliados Arábia Saudita, Paquistão e Emirados Árabes Unidos reconheciam o Talibã como governo.
Assim, há a expectativa de que figuras opositoras do Talibã ao longo dos anos e que vêm conversando com o grupo, como o ex-presidente Hamid Karzai e o ex-chanceler Abdullah Abdullah, integrem o governo ou algum tipo de conselho.
A liderança espiritual do país, que voltou a se chamar Emirado Islâmico do Afeganistão, será do recluso comandante do Talibã, Haibatullah Akhundzada. Ele está em Kandahar, mas não é visto em público há anos.
Já as funções executivas deverão ter a presença do mulá Abdul Ghani Baradar, que foi o negociador principal do acordo de paz, e figuras polêmicas como o Mohammad Yaqoob e o já citado Anas Haqqani –respectivamente, o filho do fundador do Talibã, mulá Mohammed Omar, e um dos líderes da rede terrorista homônima.
A formação da nova administração deverá evitar o erro central do governo passado, que foi ignorar quem cuidava da burocracia. Por isso o Talibã tem insistido em que concederá anistia a qualquer opositor que resolva colaborar.
Isso também tenta vender ao mundo uma imagem mais moderada, que exclua a violência contra mulheres e adversários, embasada numa leitura radical da sharia, a lei islâmica. O país, afinal de contas, precisa de dinheiro e apenas fundos decorrentes do tráfico de ópio ou a ajuda clandestina do aliado Paquistão não são suficientes.
Ao mesmo tempo, poucos acreditam no total comprometimento dos talibãs, como o relatos de perseguições e a volta de restrições a mulheres indicam. Em Cabul, médicas, enfermeiras e professoras já foram autorizadas a voltar ao trabalho, mas de forma totalmente separada dos homens.
Perto do regime aberrante vigente nos anos 1990, é quase a Escandinávia. Mas nem por isso há tranquilidade: a agência Reuters recolheu diversos depoimentos de mulheres que querem sair do país por não se sentirem seguras no trabalho.
Há também o caos cotidiano a ser administrado, algo usualmente não associado a pessoas que só fizeram guerra em suas carreiras. Em Cabul, desde a reabertura dos bancos na segunda (30), há filas de pessoas tentando retirar dinheiro –apesar da limitação vigente.
Desde que tomaram a capital, no dia 15, os talibãs também veem um surto inflacionário na já bastante informal economia local. Há relatos semelhantes em outras cidades grandes do país, como Jalalabad.
Na segurança da capital, que é exercida pela rede Haqqani, a situação parece ainda sob controle, apesar do grande atentado cometido semana passada pela sucursal afegã do Estado Islâmico. O temor maior, relatado à Folha nos últimos dias por pessoas escondidas, é mais de represálias por parte do novo governo.
O Talibã só não controla hoje a região do vale do Panjshir, no nordeste do país. Nesta quarta, o comandante militar Amir Khan Motaqi pediu para que os rebeldes lá entocados se rendam sem luta. "O Emirado Islâmico é o lar de todos os afegãos", disse, em tom conciliatório que obviamente levanta suspeitas.
O Panjshir nunca se entregou ao Talibã, e a antiga Aliança do Norte lá baseada foi a força terrestre que tomou Cabul em 1996, com o apoio de bombardeiros e depois tropas ocidentais.