© NASA
REINALDO JOSÉ LOPESFOLHAPRESS - Parece difícil de acreditar, mas houve um tempo em que o termo astronauta era sinônimo de panaca -ao menos para alguns dos que conheciam o nascente programa espacial americano por dentro.
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Afinal de contas, os sujeitos enviados nas primeiras cápsulas espaciais iam ficar sentados num cubículo, enquanto foguetes e sistemas automatizados faziam todo o trabalho de decolagem, navegação e pouso, certo? Aliás, antes que seres humanos fossem para o espaço, chimpanzés seriam treinados para realizar o mesmíssimo feito, sinal de que aquilo, no fundo, não tinha nada de muito complicado.
Se essa visão hoje nos parece estapafúrdia, é porque uma série de fatores, que vão da geopolítica da Guerra Fria aos esforços dos próprios astronautas, redefiniram o que significava viajar para o espaço. Os bastidores dessa redefinição monumental são o tema de "Os Eleitos", livro-reportagem do jornalista americano Tom Wolfe, morto em 2018, que acaba de ganhar nova edição brasileira.
Um dos pioneiros do chamado "new journalism", movimento que buscou empregar os recursos da ficção literária para contar histórias reais, Wolfe às vezes é acusado de pirotecnia excessiva em seus textos. Ao menos no caso de "Os Eleitos", a acusação é injusta.
A obra traz a mistura certa de detalhamento narrativo, capacidade de retratar com argúcia seus personagens e um bom humor cáustico, sem deixar de lado o tom épico apropriado ao tema.
Na receita de Wolfe, porém, o ingrediente-chave são os personagens, e ele escolheu como protagonistas os sete primeiros astronautas da história dos Estados Unidos, selecionados em 1959 para participar do projeto Mercury.
Os chamados "Mercury Seven" tinham muitas coisas em comum, como a experiência com voos militares na Segunda Guerra Mundial ou na Guerra da Coreia, a relativa juventude -a maioria estava na casa dos 30 anos- e alguma ligação com a cultura dos pilotos de testes, embora nem todos fizessem parte da elite dessa profissão.
O fato de que alguns dos principais pilotos de testes americanos não tenham sido escolhidos para integrar os "Mercury Seven" talvez explique por que os que continuaram a pilotar aviões experimentais torciam o nariz para os astronautas.
Apesar da rejeição de seus antigos pares, porém, a equipe original de viajantes do espaço tinha hábitos similares -uma cultura de desafiar limites (subindo em máquinas que rompiam a barreira do som de ressaca e em jejum, por exemplo), o gosto por carros velozes e certa cafajestice diante do sexo feminino, embora já fossem todos casados.Wolfe equilibra de forma precisa esse ar topetudo dos primeiros astronautas com, de um lado, as indignidades a que são submetidos a caminho do espaço -a colocação de sensores em todos os orifícios corporais possíveis, para começo de conversa- e, de outro, a luta da trupe para que se tornem verdadeiros pilotos de suas naves, e não meros "chimpanzés com ensino superior completo", como desdenhavam os pilotos de testes das antigas.
Conforme o projeto Mercury se consolida, as coisas vão mudando graças ao pano de fundo da aparente supremacia da União Soviética no espaço. Nunca se pode esquecer, por exemplo, que o regime comunista saiu na frente tanto na criação do primeiro satélite artificial da Terra quanto na entrada do primeiro ser humano em órbita do planeta.
Diante das vitórias soviéticas, o governo americano passa a enxergar o desafio do espaço como um elemento central para a própria sobrevivência da nação, e os astronautas, argumenta Wolfe, ganham uma espécie de armadura simbólica de cavaleiros na imaginação dos Estados Unidos. Viram o Davi pronto a enfrentar o Golias da União Soviética.
É fascinante observar como esse processo se completa ao longo de poucos anos, em grande parte graças à iniciativa dos próprios astronautas. Nesse quesito, embora Alan Shepard tenha sido o primeiro americano no espaço, quem realmente se destaca é John Glenn, cuja oratória desenvolta e devoção escancarada aos princípios tradicionais dos Estados Unidos (ao que tudo indica, bastante sincera) ajudaram a pôr os astronautas num pedestal.
Numa era em que até Jeff Bezos chegou ao espaço, ler sobre como tudo começou talvez mostre que, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas.OS ELEITOSAvaliação ÓtimoPreço R$ 74,90 (432 págs.)Autor Tom WolfeEditora RoccoTradução Lia Wyler