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FLÁVIA MANTOVANISÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Enquanto a maioria dos estrangeiros corria para deixar o Afeganistão o antes possível, a brasileira Anelise Borges esperava uma chance de fazer o caminho contrário. Correspondente internacional da rede Euronews, ela convenceu seus chefes a deixá-la ir ao menos até o Paquistão, enquanto avaliava a possibilidade de ir para o país vizinho.
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Atravessou a fronteira no último dia 1º, pouco depois que as tropas americanas deixaram definitivamente o país, e está em Cabul desde então, acompanhando protestos de mulheres, entrevistando a população em suas casas e membros do Talibã nas ruas.Natural de Santa Catarina, a jornalista de 37 anos mora fora do Brasil há 15. Já viveu na Turquia, no Qatar e na Inglaterra e atualmente está baseada em Paris.
Em sua carreira, fez reportagens em países como Síria, Líbia, Belarus e Irã, entrevistou o ditador venezuelano Nicolás Maduro e o opositor Juan Guaidó na Venezuela e fez um documentário sobre os dez dias que passou dentro do navio humanitário de resgate de imigrantes Aquarius.
Apesar da experiência em coberturas de crises e conflitos, esta é, para ela, a cobertura mais difícil que já enfrentou. Em entrevista concedida nesta quinta-feira (10), Anelise conta como é ser uma das poucas mulheres jornalistas a cobrir o conflito in loco -ela calcula que sejam menos de dez, no total.De quem partiu a ideia de ir para o Afeganistão?
ANELISE BORGES - Desde que os americanos confirmaram a retirada das tropas, eu estava planejando uma viagem para cá, para fazer uma série de reportagens sobre o fim dessa missão. Eu tinha passagem comprada para vir dia 25 de agosto, mas o Talibã chegou a Cabul dia 15 e os planos tiveram que ser adaptados. Primeiro a Euronews disse que de maneira nenhuma eles iriam me mandar para cá, porque a situação estava muito volátil. A gente tinha alguns repórteres freelancers no país e meu chefe falou que estava tentando tirar as pessoas de lá, não tinha sentido me enviar. Então eu negociei vir para o Paquistão, cobrir a situação de um país vizinho.Foi possível fazer alguma avaliação de risco antes de atravessar a fronteira?
AB - A gente fez uma avaliação de risco, mas chegou uma hora que não tinha mais como, essa viagem ultrapassava todos os riscos que a Euronews normalmente se propõe a assumir. Nem a companhia de seguros quis nos assegurar. Eu vim num momento em que muitas pessoas já tinham ido embora. Os únicos jornalistas estrangeiros que ficaram estavam num hotel embarricados, muitos deles ainda estão.Fiz um acordo com a Euronews e disse que precisava estar aqui. A gente até consegue trabalhar com testemunhas a distância, mas não tem comparação você estar presente no lugar. Assumimos o risco porque confiamos em pessoas que já trabalhavam com a gente aqui e se dispuseram a me buscar na fronteira. Ficamos monitorando todos os dias, uma pessoa fez uma viagem de reconhecimento, conversamos com outros repórteres que tinham pegado a mesma estrada. E a gente veio. Quer dizer, eu vim sozinha e lá encontrei um produtor e um motorista. Sempre trabalhei sozinha, mas aqui a situação não permite.O Talibã tem dado alguma garantia de segurança para jornalistas internacionais?
AB - O Talibã propôs credenciamento para os jornalistas. Quando você chega no país, tem que se apresentar no Ministério da Informação. Eu mostrei a carta da TV, o passaporte e eles imprimiram um documento do Emirado Islâmico do Afeganistão com o carimbo do Talibã dizendo que eu tenho autorização para trabalhar. É surreal, mas foi assim que aconteceu.Você disse que considera esta a cobertura mais difícil que já fez. Por quê?
AB - Sem dúvida é a mais difícil. No ano passado estive na Belarus cobrindo as eleições e foi muito dificil também porque fui de maneira ilegal, o governo não me deu autorização. E a Belarus tem polícia secreta, tem a KGB, eu tinha que trocar de hotel quase todas as noites.Aqui é diferente, mas é tão tenso quanto porque a gente não sabe de onde vem a ameaça. O Talibã abriu todas as cadeias e soltou todo mundo que tinha lá dentro. Segundo minhas fontes, deve ter uns 2.000 membros do Estado Islâmico aqui. Então a situação de segurança é crítica não só em relação ao Talibã.Nos últimos dias a tensão aumentou por causa dos protestos [de mulheres]. A concentração de muita gente num lugar só vira um alvo fácil para um ataque terrorista. E o Talibã também não quer que o mundo veja essas imagens. Eles têm dito que o Afeganistão agora está independente da força ocupante americana, que as pessoas não têm medo deles, e as manifestações de rua contradizem essa narrativa.Mas para mim o mais difícil é que ao mesmo tempo em que estou contando as histórias das pessoas, eu estou colocando elas de frente com os medos delas, com o inimigo. Fiz entrevistas com mulheres nos protestos que queriam ser filmadas, dar o nome e o sobrenome. Eu pergunto: 'Você tem certeza?' É um equilíbrio muito difícil, eu realmente não sei se estou fazendo a coisa certa. Muitas vezes eu me pergunto se eu não estou fazendo mais mal pra essas pessoas do que bem. Porque eu sei que no momento que eu for embora elas vão ficar.Como têm sido esses protestos?
AB - Foi incrível porque começou com um grupo pequeno de mulheres que foram às ruas todos os dias: primeiro eram 12, 15, 20, e um dia foram mais ou menos uns 300 ou 400 homens que se juntaram a elas. O Talibã ficou desnorteado, eles não sabem como fazer controle de multidões. E isso levou ao que aconteceu dois dias atrás, quando os talibãs atiraram por uns 10 minutos para o alto. Não sei como não morreu gente porque eram centenas de pessoas e mais ou menos uns cem talibãs atirando para o céu com metralhadoras.O Talibã tenta passar uma imagem de que desta vez dará mais liberdade para a população e será menos violento do que 20 anos atrás. O que você tem visto confirma isso?
AB - De maneira nenhuma. Passei hoje umas duas horas na casa de uma menina brilhante que conheci em um protesto. Ela me disse que agora perdeu toda a esperança. É uma menina de 20 anos, que fala um inglês impecável, lê milhares de livros. Ela falou: 'Ainda tenho força, vontade de lutar, sonhos, mas eu sei que eles vão se apagar. A dor e o desespero mudam as pessoas e vão me mudar também'.As mulheres acham que a única chance que elas tinham era agora que jornalistas internacionais estão aqui, que a comunidade internacional ainda está titubeando entre apoiar ou não esse governo. Elas acham que os dias delas estão contados, não no sentido de que vão ser todas assassinadas, mas de que vão ser apagadas, eliminadas da sociedade e do futuro do Afeganistão.Você se sentiu ameaçada ou viveu situações de perigo enquanto está aí?
AB - Sim, mas ser jornalista me ajudou. Os talibãs andam armados até os dentes, né? Muitos são uns meninos, são pequenininhos, as armas são quase do tamanho do corpo deles, é assustador. E eles andam também com uns bastões de ferro para bater nas pessoas. Nas manifestações, eu filmo com meu celular e eles acham que eu sou uma manifestante. Já ameaçaram bater em mim várias vezes. Um deles veio com tudo para bater no meu rosto. O meu produtor se colocou no meio e gritou que eu era jornalista, para ele parar. Para mim foi o momento mais tenso porque eu achei realmente que ele ia me bater.Fora isso, não me senti ameaçada. Eu fico preocupada é com meu produtor e meu motorista. Estou conseguindo tudo aqui graças a eles. Não tenho crédito nenhum, eles são meus olhos e meus ouvidos aqui. Meu produtor, o Tawfiq, é um menino incrível, tem muito carisma, fala com todo mundo, negocia acesso para mim com o Talibã. E ontem ele foi preso, ficou mais de 3 horas detido. Comecei a ligar para todo mundo com quem eu tinha tido contato dentro do Talibã. Levou umas três horas e a gente finalmente conseguiu tirar ele de lá.Quando tempo você pensa ficar aí?
AB - Essa é uma decisão que a gente está tomando diariamente. Diariamente a gente decide se dá para ficar mais um dia, o que é muito difícil. Não posso chegar a um ponto em que eu arrisque tanto a segurança deles [a equipe local] que eles não possam mais trabalhar quando eu for embora. Ontem eu te confesso que eu estava pronta para ir embora. O Tawfiq que me convenceu a ficar.Ser uma jornalista mulher nesse tipo de cobertura ajuda, atrapalha ou não faz diferença?
AB - Em algumas coberturas complica, mas aqui me ajudou muito. Principalmente porque eu ando toda coberta, de abaya [túnica preta longa] e véu cobrindo até meu pescoço. Eu recebi muitas críticas sobre isso ultimamente. Mas me visto assim simplesmente porque me ajuda com o Talibã, porque eles não prestam muita atenção em mim, acham que eu sou uma mulher local conservadora, e eles tendem a respeitar isso. Estou aqui há oito dias, passei em tudo que é checkpoint, quando eles me veem no carro, eles só nos pararam uma vez.E ser mulher ajuda imensamente a entrar em ambientes femininos. Por exemplo, eu acabo de sair de um casamento. Essas festas são segregadas e fiquei no espaço das mulheres, que estavam incrivelmente maquiadas, de salto, super produzidas. A galera tem que viver, tem que casar, ter filho. É surreal como a força da vida se impõe.