PF aponta ligação entre migração irregular para os EUA e máfia mexicana

O delegado Cristiano Campidelli afirma que agenciadores no Brasil –que fazem o pagamento para viabilizar a travessia da fronteira– só conseguem atuar com o envolvimento de pessoas ligadas a mafiosos no México.

© Getty Images

Justiça EUA-IMIGRAÇÃO 28/12/21 POR Folhapress

 (FOLHAPRESS) - A tentativa de ingresso de brasileiros nos Estados Unidos de maneira ilegal envolve casos de sequestro, estupro e assassinato ligados ao vínculo de agenciadores com a máfia mexicana, de acordo com investigações da Polícia Federal.

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O delegado Cristiano Campidelli afirma que agenciadores no Brasil –que fazem o pagamento para viabilizar a travessia da fronteira– só conseguem atuar com o envolvimento de pessoas ligadas a mafiosos no México. Dever a esses grupos pode fazer com que o sonho de entrar nos EUA vire pesadelo e afetar familiares que permanecem no país.

"Eles fazem pagamentos para a máfia [mexicana]. Sem a transferência desses valores, os agenciadores não conseguem operar, e seus clientes serão sequestrados, usados como mula para o tráfico de drogas, estuprados", diz. "É um esquema eminentemente ligado à máfia, a pior possível existente em solo mexicano."

O negócio da migração irregular é bilionário e envolve diversos intermediadores. O responsável pelo negócio que promove a viagem é conhecido como agenciador, cônsul ou contrabandista; as pessoas que trabalham para ele buscando interessados em migrar são os aliciadores ou recrutadores.

O processo inclui ainda os coiotes, responsáveis pela travessia do México para os EUA –feita, em muitos casos, com pessoas fortemente armadas.

A migração ilegal em si não é irregular no Brasil, mas promovê-la a fim de obter lucro passou a ser crime em 2017. A Polícia Federal aponta que esse é o terceiro tipo de infração mais rentável no país, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. Só em 2021 a promoção da migração ilegal movimentou R$ 8 bilhões.

"A estimativa considera que, em média, cada migrante pagou US$ 20 mil [R$ 112 mil] aos coiotes. A previsão é que, após a pandemia, essa infração poderá ultrapassar o tráfico de armas e de drogas [como crime mais rentável no Brasil]", diz Joziel Brito, chefe do Serviço de Repressão ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes da PF.

Governador Valadares (MG) e cidades vizinhas concentram historicamente o maior número de pessoas que tentam migrar ilegalmente para os EUA.

A reportagem percorreu a região em novembro e encontrou quem trabalha exclusivamente com a promoção da migração irregular. Há também quem divida a atividade com outra profissão –funcionários de lava a jato, vendedores de imóveis ou donos de agência de viagem. O negócio é discutido às claras.

A reportagem conversou com um contrabandista que garante conseguir colocar a pessoa nos EUA, principalmente pelo esquema conhecido como "cai cai". Nele, o migrante, acompanhado de um parente em primeiro grau menor de idade, se entrega para as autoridades americanas e é liberado para responder ao processo em liberdade.

Dependendo da forma da viagem, cada pessoa chega a pagar até US$ 25 mil (R$ 141 mil) para a travessia.

A oferta costuma envolver a contratação de uma dívida. O agenciador afirma que, no seu esquema, o migrante paga uma entrada quando já estiver nos EUA. Depois, assume prestações de US$ 1.000 (R$ 5.600) por mês até a quitação.

O esquema começa nos trâmites para a obtenção dos documentos. O interessado é primeiro levado para emitir o passaporte, depois recebe as passagens e uma quantia inicial em dinheiro a ser levada para a viagem.

Isso porque os custos envolvem subornos, segundo disseram à reportagem o contrabandista e interlocutores na PF. Há, por exemplo, o chamado "pagamento da descida", uma propina de US$ 1.000 para agentes da imigração mexicana –ainda que as rotas para chegar ao México e entrar nos EUA variem.

A embaixada mexicana no Brasil orientou que a reportagem procurasse o Instituto Nacional de Migração. Até a publicação desta reportagem, porém, não houve retorno.

O pagamento só é realizado em espécie porque, de acordo com a versão de quem promove a viagem, o "dinheiro precisa circular". Um agenciador não quis declarar à reportagem quanto recebe, mas informou que não teria como justificar a quantia no imposto de renda.

Pessoas que trabalham para ele recebem US$ 1.000 de comissão por cliente que fechar o negócio.

Independentemente do formato da viagem –há contrabandistas que aceitam parcelar toda a viagem, por exemplo–, em todos os casos os migrantes precisam dar uma garantia de que irão quitar a dívida, assinando notas promissórias para pagamento futuro. Há casos de pessoas que dão imóveis e carros como garantia.

Em Governador Valadares não é difícil encontrar personagens desse negócio, tanto do lado dos que ofertam o serviço quanto dos que buscam migrar. O contrabandista que conversou com a reportagem disse que a demanda de interessados em deixar o país tem sido intensa a ponto de ele relatar dificuldades de achar lugares em voos.

Depois de um fluxo reduzido em 2020 em razão da pandemia, a quantidade de brasileiros que tentaram entrar de forma ilegal nos EUA explodiu neste ano. Dados do Serviço de Alfândega e Proteção das Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) apontam que foram mais de 58 mil apreensões em 2021. O crescimento foi de 534% em relação a 2020, quando foram 9.147.

Nas ruas de Governador Valadares, alguém sempre conhece um agenciador, um aliciador ou pessoas que foram para os EUA. A reportagem visitou uma lanchonete, na esquina das ruas Israel Pinheiro e Barão do Rio Branco, conhecida por reunir pessoas que fazem esse tipo de negócio; só ali foram dois contatos realizados.

A reportagem também procurou agências de viagens. O dono de uma delas negou inicialmente fazer o serviço de migração irregular, afirmando que só vende a passagem para o México. Pouco depois, porém, entrou em contato com uma pessoa dizendo que havia um cliente interessado.

Os dados da Polícia Federal apontam que 73 pessoas já foram presas por promover a migração irregular –apesar de a maioria envolver a tentativa de entrada nos EUA, há nessa conta casos de facilitação de viagens para outros lugares.

Na região de Governador Valadares, a corporação já deteve até políticos envolvidos no esquema: no ano passado, foram presos o prefeito de Piedade de Caratinga, Adolfo Bento Neto, e um ex-vice-prefeito de Tarumirim, Heli Moura de Paula.

"O coiote funciona como um agiota. Se o migrante diz que não tem nada para pagar o empréstimo, ele pergunta se a mãe tem casa, carro, porque precisa de garantia. Se não houver quitação da dívida, laranjas vão fazer ameaças e tomar essas propriedades", diz Daniel Ottoni, delegado da PF em Governador Valadares.

Outro grande cônsul preso pela corporação na região foi Geraldo Magelo de Lima, em Tarumirim, em 2019. A polícia conseguiu comprovar que ele mandou, em um ano e meio, 282 pessoas para os EUA. Lima foi apontado em denúncia do Ministério Público como líder de coiotes no Brasil, responsável pela aquisição de passagens aéreas e controle do embarque e desembarque dos migrantes.

Ele também providenciava hospedagens e o traslado até o aeroporto e mantinha comunicação com intermediários no México, repassando fotos dos passageiros. No México, comparsas facilitavam o processo, encaminhando os migrantes para residências temporárias, até conseguirem atravessar a fronteira.

A PF apontou que Lima teve lucro superior a R$ 13 milhões de novembro de 2017 a julho de 2019. Veículos que estavam em posse dele foram apreendidos –supostamente, haviam sido dados como pagamento pelas viagens.

Lima cobrava de US$ 20 mil a US$ 22 mil (R$ 124 mil) de cada migrante irregular. Se a viagem fosse pelo sistema "cai cai", o preço era reduzido para US$ 12 mil (R$ 68 mil). Como o processo envolve vítimas menores de idade e há uma série de informações relativas a finanças dos réus e das vítimas, ele tramita em sigilo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

A Polícia Federal já tem conhecimento que as organizações criminosas de Minas Gerais têm procurado migrar para outras unidades da federação, como Rondônia e Espírito Santo.

Geralmente, os envolvidos nesses esquemas respondem por promoção da migração ilegal e pelo envio de crianças e adolescentes para o exterior a fim de obter lucro (quando há o envolvimento de menores). Os crimes de associação criminosa e falsidade ideológica também podem ser incluídos.

Por causa do aumento desse crime, a Polícia Federal criou neste ano a Bemig (Base de Enfrentamento à Promoção da Migração Ilegal e Crimes Conexos) em Governador Valadares. Joziel Brito diz que um dos focos é trabalhar para descapitalizar os envolvidos.

Ele disse que a polícia tem investido em tecnologia, com o cruzamento de dados, para depender menos do depoimento de vítimas. Isso porque tanto no tráfico de pessoas como na migração irregular as pessoas ficam vulneráveis e não conseguem ser boa fonte de informação.

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