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BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Considerado um dos três fundadores do movimento estudantil de esquerda que se transformaria na Frente Ampla, que nesta sexta-feira (11) chega ao poder no Chile, Giorgio Jackson afirma que a ausência do brasileiro Jair Bolsonaro à posse de Gabriel Boric "é uma atitude ideológica que tem a ver mais com o personagem político que ele construiu e que dialoga apenas com quem votou nele. Em nenhum momento consideramos um distanciamento do povo brasileiro, nosso irmão gigante, com quem sentimos profunda proximidade cultural e social", disse.
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Considerado o mais conhecido e com maior liderança entre o trio formado por ele, a agora ministra Camila Vallejo e o presidente eleito Gabriel Boric, Jackson era considerado na Frente Ampla o mais preparado para concorrer às eleições de dezembro do ano passado. Porém, sua idade não alcançava.
A lei chilena exige que o presidente tenha, no mínimo, 35 anos, e Boric era o único que tinha essa idade quando chegou a data do registro das candidaturas. Jackson tem um ano menos e Vallejo, também cotada, dois.
Os três amigos participaram dos protestos estudantis de 2011 e daí saltaram ao Congresso. Agora, a partir de sexta, estarão no comando do país.
Jackson, que assumirá o cargo de secretário-geral da Presidência, falou ao jornal Folha de S.Paulo, por videoconferência, na tarde desta quarta-feira (9).
PERGUNTA - Os principais entraves para as reformas (tributária e da previdência) que vocês propõem estarão no Congresso, onde o governo não terá maioria. Seu cargo será, entre outras coisas, o de coordenar essa relação entre o Executivo e o Legislativo. Como vê essa dificuldade?
GIORGIO JACKSON - Nossas dificuldades estão sobrepostas, temos ainda a pandemia e seus efeitos na economia, a continuação do exitoso programa de vacinação e destaco também aquelas questões em que há muita diferença com a gestão atual [de Sebastián Piñera], relacionadas às políticas de direitos humanos e migratórias, que são muito importantes para nós.
Sobre as reformas, temos muita preocupação porque não temos maioria no Congresso. Nos demais assuntos, vejo mais espaço para avançar e a chegar a acordos; nas reformas, tudo será mais difícil. Vamos ter de construir estratégias e estamos trabalhando diretamente nisso.
Creem que direitistas que aderiram ao ultradireitista José Antonio Kast no segundo turno, mas que são de uma direita mais democrática, não podem acompanhá-los nas reformas? Boa parte da direita havia votado, no ano anterior, contra a vontade de Piñera, a favor da retirada antecipada dos fundos de pensão.
GJ - Sim, há uma direita que durante muito tempo tratou de construir uma narrativa mais liberal e não conservadora. Diria que desde 2019 [ano das manifestações], quando nos vimos numa encruzilhada em relação aos direitos humanos e às reações aos protestos, houve uma convergência entre a esquerda e essa direita para se posicionar contra a repressão e os abusos dos direitos humanos que o Estado vinha cometendo.
Havia uma parte da direita mais sensível também aos efeitos da pandemia, que votou pela retirada antecipada das aposentadorias.
Porém, quando a campanha eleitoral se acirrou, essa direita abraçou Kast e se distanciou de nós. Creio que alguns deles podem voltar a se aproximar, é parte do nosso trabalho a partir de sexta porque precisaremos ter mais apoio no
Congresso.Há uma parte da esquerda que está já muito crítica a Boric, por seu discurso sobre a realização gradual das reformas e, principalmente, no caso dos chamados presos políticos, aquelas pessoas que estão privadas de liberdade, sem julgamentos, desde os protestos de 2019.
Como pretendem encarar esse problema? Na sexta, junto à posse, haverá um protesto sobre isso em Santiago.
GJ - Temos tido conversas com as famílias dessas pessoas e, em linhas gerais, queremos que este tema deixe de ser tratado a partir da lei de segurança de Estado, que é o que motivou sua prisão [acusados de causar e incitar distúrbios por questões políticas].
Queremos levar esses casos todos a um tratamento da Justiça comum. Mas, como você mesma aponta, é um problema para o qual parte da esquerda tem muita pressa.
Teremos de continuar dialogando até resolver esse tema, que não é fácil.
Há também um projeto de indulto que passará pelo Senado, que é de difícil tramitação, mas pelo qual vamos lutar muito, esperamos a compreensão em relação a esses tempos necessários. Venho conversando pessoalmente com esses familiares e, da parte deles, estamos encontrando apoio.
Outubro de 2019 nos deixou com muitas dívidas e queremos saldá-las, por exemplo, com a reparação e a Justiça a pessoas que sofreram mutilações, abusos, perderam os olhos, isso precisa ser atendido com a máxima urgência.Hoje existe um estado de exceção, que supõe a militarização, tanto ao norte como ao sul do país, algo que vai muito de encontro à filosofia de seu grupo político.
Vocês irão renovar esses estados de exceção?
GJ - Isso não está decidido ainda e cabe primeiro a uma avaliação do ministério do Interior e da Presidência. Minha sensação é de que a situação que temos no sul [com os enfrentamentos violentos por terra entre fazendeiros e grupos rebeldes de origem indígena] não é algo pontual e, portanto, não se resolve mandando o Exército e declarando estado de exceção.
Aí o que temos de fazer é desenhar uma política para resolver um problema que é ancestral, vem desde a fundação do Chile.
Já no norte, temos uma questão mais grave pela intensidade e pela novidade, que é a quantidade enorme de migrantes venezuelanos que vêm chegando todos os dias gerando uma situação de violência e enfrentamento com os moradores [principalmente em Iquique e Colchane]. Neste caso, eu diria que é mais aceitável ter um estado de exceção até formular uma solução.
Porque no norte o problema é urgente e é excepcional, há um nível de conflito e de violência que, por ora, talvez exija que sigamos com esse recurso. Mas, como você disse, não corresponde ao modo como nós pensamos que há de se lidar com esses temas de segurança nas fronteiras. Portanto, há muito que se debater e trabalhar porque a população local está passando maus momentos e temos um aumento da insegurança ali muito grande.
Muitos analistas creem que a vitória de Boric pode estimular a vitória da esquerda na Colômbia e no Brasil. O que acha disso?
GJ - Acho muito apressado e pretensioso de nossa parte pensar que, só porque aqui as coisas aconteceram assim, isso possa catapultar as vitórias de Gustavo Petro [com quem Jackson se encontra nesta quinta, 10, em Santiago] e de Lula.
Creio mais em que há um aspecto geracional ligado ao papel que o governo deve ter com relação à ecologia, ao feminismo, à diversidade, à globalização. E que fazem pensar que pode haver uma massa crítica com relação aos modelos atuais e como esses modelos não estão funcionando. E que esse aspecto, sim, leve a mais vitórias da esquerda à região.
Tenho muita ilusão de que certos princípios, certos valores, que enfrentam os modelos tradicionais de governo comecem a preponderar, mais do que torcer por nomes ou partidos. Mas, obviamente, estamos muito atentos e com muita expectativa em relação ao que vai ocorrer na Colômbia e no Brasil.
Se ganham Gustavo Petro na Colômbia e Lula no Brasil, isso facilitaria a vida política do Chile na região?
GJ - Sim e estaremos conversando sobre isso com esses líderes. Já com Petro conversaremos amanhã mesmo [quinta, 10] aqui em Santiago, além de outras forças políticas de esquerda que estão lutando para ser poder em seus países.Mas eles ainda devem passar por seus processos políticos. Nós achamos que esse diálogo anterior que já estamos mantendo com forças políticas de esquerda da América Latina ajuda muito.
Raio-X
Giorgio JacksonNasceu em Viña del Mar em 6 de fevereiro de 1987. Estudou engenharia civil na Pontificia Universidade Católica do Chile. Foi um dos líderes dos movimentos de 2011 e dos fundadores da Frente Ampla. Exerceu por dois mandatos o cargo de deputado. Comandará o Ministério da Secretária Geral da Presidência no governo Boric.