Vigilância indígena seguiu passos de Bruno e Dom e acumulou evidências sobre Pelado

O que eles viviam no dia a dia, mais tudo o que ocorreu e viram nas horas e dias seguintes ao desaparecimento, foram decisivos para os rumos da investigação policial.

© Getty

Justiça DESAPARECIDOS-AM 17/06/22 POR Folhapress

(FOLHAPRESS) - Desde os primeiros minutos do alerta do sumiço do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no dia 5, integrantes da vigilância indígena que monitoram o território tinham uma certeza: Amarildo Oliveira, o Pelado, e pessoas de seu entorno eram os responsáveis pelo desaparecimento.

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A vigilância indígena documenta passo a passo o cenário de invasões à terra indígena Vale do Javari, protagonizado principalmente por pescadores e caçadores ilegais.Da floresta e do rio Itaquaí, duas mensagens em SMS são enviadas pelo celular a cada dia, uma pela manhã e uma no fim da tarde.

No dia 4, um sábado, véspera do desaparecimento de Bruno e Dom, uma das mensagens enviadas pelos indígenas trazia um relato sobre Pelado, segundo integrantes do serviço de vigilância mantido pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).

Na mensagem, havia a informação de que Pelado passou pelo grupo mostrando uma arma, no começo da manhã. A exemplo da mensagem, outras evidências foram reunidas pelos indígenas e pelas outras pessoas ligadas ao serviço de vigilância.

O que eles viviam no dia a dia, mais tudo o que ocorreu e viram nas horas e dias seguintes ao desaparecimento, foram decisivos para os rumos da investigação policial.

As mensagens em SMS, os primeiros contatos com pessoas ligadas aos suspeitos nas horas seguintes ao desaparecimento e as primeiras buscas formam um conjunto de evidências que significou uma antecipação, em vários dias, do que viria a ser reconstituído na investigação conjunta da Polícia Civil do Amazonas e da Polícia Federal.Não foi apenas na busca pelos corpos que os indígenas do Javari tiveram um protagonismo decisivo.

O aparente desfecho sobre o crime na floresta não teria ocorrido sem os relatos das vivências e evidências do conflito na região do Vale do Javari, que opõe pescadores e caçadores ilegais a indígenas, vigilantes do território e agentes da Funai (Fundação Nacional do Índio).

A reportagem conversou com integrantes da vigilância indígena que acompanham desde os primeiros minutos a história do desaparecimento de Bruno e Dom.

Houve uma participação efetiva dessas pessoas nas buscas pelos corpos e na tentativa de se montar o quebra-cabeça do crime ocorrido, para que tivessem elas mesmas uma resposta sobre o paradeiro do indigenista e do jornalista.

Essas pessoas temem por suas vidas e, por isso, são mantidas em anonimato.

Desde o início, integrantes da vigilância indígena não acreditavam que Bruno e Dom estavam vivos.

Os embates com grupos de pescadores ilegais -numa repetição com os mesmos grupos, num cenário de ausência quase total do Estado- faziam os integrantes da vigilância terem certeza de que o indigenista e o jornalista haviam sido assassinados.

A rotina de conflitos e de pesca e caça predatória permitia aos vigilantes saberem quem era quem e quais eram os caminhos no rio e na floresta usados por criminosos para desviarem da base de fiscalização da Funai, rumo ao interior da terra indígena.

Esses pescadores ilegais sempre estiveram interessados no pirarucu, um peixe caro e apreciado na região, e no tracajá, uma iguaria valorizada principalmente na Colômbia. Atalaia do Norte (AM), a cidade mais próxima da terra indígena, está numa região de tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia.

A regra é que as quantidades pescadas sejam em larga escala. Numa única apreensão, durante os dias de buscas pelos corpos, a PM da região apreendeu 500 quilos de peixe, principalmente o pirarucu.

Nesses mesmos dias, pessoas que circulavam pelo rio Itaquaí relataram que mil tracajás estariam represados em áreas das comunidades ribeirinhas próximas à terra indígena.

Cada tracajá pode ser vendido por R$ 120, segundo pessoas familiarizadas com esse tipo de exploração. Assim, somente esses mil tracajás renderiam R$ 120 mil.

É neste contexto que se dá a atuação de Pelado na região, segundo integrantes da vigilância indígena.

Quando mostrou a arma no sábado, véspera do desaparecimento de Bruno e Dom, Pelado o fez para 13 indígenas da equipe de vigilância, segundo os relatos feitos à reportagem. O gesto de demonstração de força teria sido fotografado e levado à base da Funai, segundo esses relatos.

Depois, dois celulares com as imagens foram entregues a Bruno, que estava com Dom pela região. Junto, havia um caderno de anotações sobre ilícitos e invasões à terra indígena. Até onde se sabe, esse material não foi encontrado.

Ainda conforme os relatos ouvidos pela reportagem, Bruno e Dom estiveram numa casa no lago do Jaburu, para uma entrevista do jornalista com indígenas.

Estes indígenas deixaram a terra indígena para falar com o jornalista -o lago fica fora do território tradicional. Isto teria ocorrido no sábado (4), véspera do desaparecimento.

No domingo, logo cedo, Bruno e Dom iniciaram o caminho de volta, descendo o Itaquaí.

Passaram na casa de Manoel Vitor da Costa, o Churrasco, na comunidade São Rafael. Ele é tio de Pelado. Não encontraram o pescador, que é líder da comunidade. Bruno deixou um bilhete, com o telefone anotado. Queria falar sobre manejo sustentável do pirarucu. E seguiu viagem.

Rio abaixo, pouco depois da comunidade São Gabriel, onde vivia Pelado, o indigenista e o jornalista desapareceram. Foram mortos, segundo aponta investigação da Polícia Civil e da PF. Os corpos só foram localizados dez dias depois.

A notícia do desaparecimento fez integrantes da vigilância indígena visitarem comunidades ribeirinhas atrás de notícias, acompanhados de policiais militares, no mesmo domingo (5).

A percepção de que um crime havia ocorrido, e de que esse crime tinha a participação de Pelado, levou os vigilantes a buscarem especificamente pelo pescador.

A desconfiança ficou ainda maior quando um dos irmãos de Pelado foi questionado se conhecia o pescador. O irmão respondeu que não, o que ampliou a suspeita sobre a participação do pescador.

Segundo os relatos feitos à reportagem, Pelado já dizia que buscava um acerto de contas com Bruno, servidor licenciado da Funai e um dos responsáveis pela vigilância indígena, dentro do trabalho que passou a fazer na Univaja.

Segundo esses relatos, Pelado repetia frases como "quero ver se ele é bom de tiro". O pescador já atirou contra a base da Funai, conforme relatórios da Univaja.

Pelado foi preso temporariamente, e ficou calado nos primeiros depoimentos. Depois, houve mandado de prisão temporária contra um de seus irmãos, Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos.

Antes da confissão apontada pela polícia, a família de Pelado dizia que ele era inocente e que ele não tinha envolvimento com as mortes.

O pescador vive da agricultura tradicional e da pesca, segundo familiares. Esses familiares dizem que ele foi agredido por policiais militares num igarapé, no momento da prisão, para que admitisse participação no crime.

Com a prisão de Dos Santos, Pelado deu novo depoimento e confessou participação no crime, segundo a PF. Na começo da tarde de quarta-feira (15), ele foi levado ao cenário do crime para reconstituição do que ocorreu e indicação de locais onde estariam os corpos.

Às 20h do mesmo dia, os policiais federais atracaram no portinho de Atalaia. Traziam dois corpos, em dois sacos pretos, com forte odor. Os corpos foram colocados num carro da PF para que fossem levados à cidade de Tabatinga para a perícia.

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