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ALEX CASTROSÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Por que reeditar, no Brasil de 2022, um livro de ensaios escritos na década de 1970 por uma pensadora norte-americana já morta há quase 20 anos?
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Sim, Susan Sontag era brilhante. Para ela, enquanto vivia, fazia sentido publicar em forma de livro seus melhores ensaios literários, obras que seriam traduzidas e publicadas no exterior. ("Sob o Sol de Saturno" saiu originalmente pela L&PM em 1986.)
Mas décadas se passaram, Sontag morreu em 2004 e os ventos canônicos e contracanônicos sopram cada vez mais fortes para todos os lados. Um dos ensaios, o primeiro, é em memória de Paul Goodman, um intelectual que hoje pouca gente conhece. Outro ensaio, de 1974, é uma polêmica bem-sucedida contra a reabilitação de Leni Riefenstal, até hoje conhecida como "cineasta nazista".
Outros autores a quem Sontag dedica longos ensaios, como Elias Canetti e Antonin Artaud, eram muito mais famosos, discutidos e estudados, suscitavam muito mais interesse acadêmico na década de 1970 do que hoje. (Naturalmente, qualquer afirmação assim categórica sobre o estado canônico de um autor é sempre subjetiva e fundamentalmente indefensável.)
Por que não publicar uma boa seleta, sólida e indiscutível, com os melhores ensaios de Sontag, aqueles que ninguém em sã consciência não chamaria de "geniais", ou, pelo menos, com os ensaios sobre os autores cuja estrela canônica ainda brilha forte, como Walter Benjamin, cada vez mais falado e mais estudado?
A resposta curta é que Sontag merece. A resposta longa é o próprio livro.
O crítico Harold Bloom gostava de dizer que, no futuro, falar do "Freud literário" será tão estranho quanto falar hoje do "Goethe literário": as pesquisas geológicas de Goethe passaram; o Fausto, não. Por mais que a reputação do Freud médico e criador da psicanálise esteja em baixa no mundo inteiro, a do ensaísta, autor de "O Mal Estar da Civilização", só faz crescer. O tempo depura os assuntos: no final, tudo some, mas aquilo que é percebido como tendo valor literário some por último.
Em um primeiro momento, para um ensaio ser lido, ter relevância e fazer sentido, ele precisa se referir a algo ou alguém que o público conheça. Então, na Nova York de 1972, quando Sontag faz um elogio fúnebre ao recém-falecido Paul Goodman, ela está escrevendo sobre um intelectual razoavelmente famoso para um público-leitor que o conhece.
No Brasil de 2022, porém, sem nenhuma obra de Goodman em catálogo, o ensaio poderia ser um conto borgiano sobre um autor fictício e, enquanto conto, ele sobrevive, se mantém e triunfa, pela pura força do gênio de Sontag. Em outras palavras, fora dos círculos da Gestalt que ele ajudou a articular, se Goodman ainda é lembrado no Brasil de 2022, ou seja, se ainda é canônico, é em larga medida porque Sontag escolheu olhar para ele como se fosse canônico. Uma grande ensaísta constrói o seu próprio cânone. O cânone é aquilo que ela ilumina, em um ato de vontade, com a luz de sua atenção, de seu interesse, de seu foco.
("Instinto de Nacionalidade", publicado por Machado de Assis em 1873, talvez o primeiro grande ensaio literário escrito no Brasil, sobrevive e se mantém pela argúcia do próprio Machado, não porque os leitores brasileiros de 2022 tenham interesse em saber mais sobre autores como Araújo Porto-Alegre e Pinheiro Guimarães.)
Para muitas pessoas, encarar um livro de ensaios sobre escritores que não conhece pode ser intimidador ou até mesmo absurdo. Mas Sontag é uma das melhores ensaístas de todos os tempos: sempre vale a pena pegar em sua mão e acompanhá-la por seus interesses, suas leituras, suas obsessões. No final da experiência, o leitor que se deixar levar terá visto com novos olhos quem já conhecia e sentirá que conhece a fundo quem nunca tinha ouvido falar.SOB O SIGNO DE SATURNOPreço: R$ 74,90 (192 págs.)Autor: Susan SontagAvaliação: Muito bom