© R.M. Nunes / Shutterstock.com
EDUARDO CUCOLOSÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A carioca Raquel Oliveira, 35, nunca esteve em Brasília, mas é lá que está um dos bens mais valiosos da família. Seu bisavô, Álvaro Ribeiro Saramago, era dono de um terreno que foi desapropriado em 1957 para a construção da capital federal.
PUB
Em 1975, o genro de Saramago conseguiu reunir documentos e dar início ao processo de indenização. A causa foi vencida na década de 1980. Foi quando teve início outra disputa, definir valor a ser pago. Os avós, a mãe –uma motorista de ônibus que morava na Cidade de Deus– e a tia de Raquel morreram sem que houvesse um desfecho da discussão que já dura mais de 30 anos."Foram três gerações da família que morreram sem ver um centavo desse dinheiro. A vida do vovô era esse processo. Quantos planos ele fez... Morreu em 2000, acreditando que ia sair", afirma Raquel, que mora no Cachambi, bairro da zona norte do Rio, com o marido e dois filhos com deficiência.
"Depois minha mãe, minha tia, e não saiu. Esperaram algo de melhor na vida através desse dinheiro, que era um direito deles, mas se frustraram a vida inteira."
Além dela, são sucessores no processo o irmão, professor de capoeira que mora na Hungria, e o primo, estudante de enfermaria que vive no interior de Minas Gerais e também depende financeiramente dela.Essa é a quarta geração da família envolvida no processo, que lida agora com uma nova questão.
Após a apresentação de cinco perícias com valores milionários nas últimas décadas, e muitas decisões do Judiciário contestadas e anuladas, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios fixou a indenização em R$ 60 mil, com base no valor estimado do terreno em 1957. Desse dinheiro, ainda serão descontados R$ 55 mil referentes a 50% do gasto com a última perícia.
O valor destoa das avaliações apresentadas pelo próprio governo do Distrito Federal e pelo Ministério Público há 20 anos (R$ 3,8 milhões e R$ 11 milhões, respectivamente).
"Querem pagar um valor absurdo. Não tem nada a ver com o que foi cogitado nesses anos. É como se você entrasse em um processo para receber uma indenização e saísse devendo", afirma Rachel.
O escritório que acompanha a execução da sentença estima que o terreno de 12 mil metros quadrados próximo à região central vale pelo menos R$ 30 milhões atualmente. Por isso, recorreu em 2016 ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), onde o processo aguarda uma decisão."A lei sempre determinou avaliação contemporânea ao laudo, porque você tem de indenizar na data em que paga e não indenizar com o preço lá de trás. Nunca poderia ser menos do que o terreno vale hoje", afirma o advogado Eduardo Gouvêa, 55, que começou a atuar no caso quando tinha cerca de 25 anos.
"Vão pagar quase nada pela propriedade e amanhã botam no leilão da Terracap [empresa pública do DF responsável pela indenização] e vendem por R$ 30 milhões. Se isso não é enriquecimento ilícito, não sei o que é que é."
Além de cuidar da casa e dos dois filhos, Rachel trabalha fazendo marmitas e doces que vende na clínica em que o filho mais novo faz terapia, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio. Quando criança, trabalhou como catadora de café no interior de Minas.
Diz que atualmente a família não passa fome, mas que o dinheiro é a esperança de garantir o futuro dos filhos, que precisam de tratamento médico e acompanhamento especial na escola, do primo mais novo. O irmão também conta com os recursos para voltar a viver no Brasil junto à família.
"O principal objetivo é esse: poder equilibrar a vida para viver com tranquilidade e dignidade. Não consigo nem pensar no que eu faria. Eu teria de me adaptar a não viver no aperto."
Raquel afirma ter esperança, mas ao mesmo tempo dúvida se conseguirá receber algum valor. "Eu estava levando minha filha para a escola e falando com ela: a gente é milionário pobre. A gente tem direito a receber um dinheiro que nunca saiu e eu nem tenho expectativa de que saia nada. Mas vamos ver se sai alguma coisa boa disso. Tem de sair."
A construção de Brasília se deu a partir da desapropriação de fazendas que ocupavam à época o Planalto Central, segundo informações da Terracap. Mas a precariedade dos registros da época dificultaram o processo.
Atualmente, dos 5.800 km² que compõem todo o DF, quase 10% são terras que foram desapropriadas parcialmente e nas quais não há definição precisa de quais parcelas são públicas ou particulares. A empresa tem buscado nos últimos anos esses proprietários para a realização de acordo de demarcação e divisão amigável dessas terras.