Flordelis vai de estrela gospel a ré por assassinato

A cantora, pastora evangélica e ex-deputada federal foi condenada a 50 anos e 28 dias de prisão pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, ocorrido em 16 de junho de 2019 na garagem da casa em que a família morava, em Niterói, região metropolitana do Rio.

© Michel Jesus / Câmara dos Deputados

Justiça Trajetória 13/11/22 POR Estadao Conteudo

Aos 61 anos, Flordelis dos Santos de Souza está nas manchetes dos jornais por um crime, mas sua fama é muito anterior. Antes de frequentar o noticiário policial, a pastora lançou discos de música gospel, fez turnês nos EUA e Europa, recebeu homenagens. Já foi tema de filme, focado em torno de sua vocação missionária, de um livro pouco lisonjeiro (Flordelis: A Pastora do Diabo, que a acusa de capitalizar em cima da adoção de dezenas de crianças). Mais recentemente, se tornou protagonista de uma produção que foca o assassinato do seu marido, Anderson do Carmo (Flordelis: Questiona ou Adora), da Globoplay.

A cantora, pastora evangélica e ex-deputada federal foi condenada a 50 anos e 28 dias de prisão pelo assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, ocorrido em 16 de junho de 2019 na garagem da casa em que a família morava, em Niterói, região metropolitana do Rio. O julgamento, iniciado às 9h da última segunda-feira, 7, acabou às 7h20 deste domingo, 13.

Nascida na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, Flordelis começou cedo a cantar em cultos evangélicos, ambiente em que desenvolveu fama e influência. Perdeu o pai e o irmão em um acidente de carro quando tinha 14 anos. Completou o ensino médio e trabalhou como balconista em uma padaria e professora de educação infantil. Também acompanhava a mãe, Carmozina Motta, em uma rotina evangélica, da qual participava cantando e tocando guitarra. Logo começou a realizar cultos.

Desde o início dos anos 1990, ainda no Jacarezinho, acolheu dezenas de crianças e adolescentes pobres, ainda que sem processos formais de adoção na Justiça. Certa vez, quando já vivia com Anderson, foram 37 menores, conforme relata, fugidos de uma chacina na Central do Brasil, no centro da cidade. Mas já na adolescência foi chamada de "a missionária do tráfico", por resgatar menores da marginalidade.

Aos 30 anos, recém-separada do primeiro marido e com três filhos biológicos (Simone, Flávio e Adriano), Flordelis conheceu Anderson, que na época tinha 14 anos e também era morador da comunidade. De início, ele se envolveu com Simone, que tinha 11 anos.

Diferentemente dos jovens que Flordelis acolhia, Anderson não tinha problemas com drogas nem crimes. Nascido e criado na comunidade, vivia com os pais e estava concluindo o ensino médio no Colégio Pedro II, tradicional escola federal no bairro de São Cristóvão. Também era jovem aprendiz no Banco do Brasil.

Na época, Flordelis e sua mãe já tinham aberto uma igreja, no Jacarezinho. Anderson se tornou líder do grupo de jovens. Não muito depois, e apesar da pouca idade, se tornou uma espécie de administrador da casa de Flordelis, visto como um líder pelos demais.

Dentre os jovens que ela acolheu, um deles - Wagner Andrade Pimenta, o Misael - passou a gravar os cultos ministrados por Flordelis e a fazer cópias em CD e DVD para vender nas igrejas por onde passavam. A parceria de Anderson e da cantora se consolidou enquanto ela pregava e ele transformava em dinheiro as pregações, que vendia pelas ruas.

Juntos, Flordelis e Anderson fundaram a Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, em 1999, no Rocha, zona norte do Rio. Anderson era presidente da instituição. No início dos anos 2000, o ministério foi transferido para São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. A igreja chegou a ter cinco filiais.

Em 2007, com a influência florescendo nas igrejas evangélicas que criou, Flordelis fundou o Ifam (Instituto Flordelis de Apoio ao Menor). Seu trabalho de acolhimento estava ficando cada vez mais conhecido enquanto sua carreira como cantora decolava. Ela lançou quatro álbuns independentes -,

Com a carreira como pastora e cantora gospel em franca ascensão, a carioca foi tema do filme Flordelis - Basta uma palavra para mudar, que marcou o auge de sua fama. A produção teve a participação de atores famosos, como Marcello Antony (interpretando Anderson), Ana Furtado, Leticia Sabatella, Alinne Moraes, Bruna Marquezine, Reynaldo Gianecchini, Cauã Reymond e Deborah Secco. Eles doaram seus cachês à causa de Flordelis. O dinheiro arrecadado foi investido na construção de um centro de reabilitação para jovens e na compra de uma casa para a pastora.

Um ano depois do filme, graças a articulações de Anderson, Flordelis assinou com a gravadora evangélica MK Music, do senador Arolde de Oliveira, e lançou "Fogo e Unção". Além de produzir o álbum, Oliveira se tornou padrinho político dela.

Já em 2012 foi a vez do CD "Questiona ou Adora’', seu maior sucesso, com mais de 80 mil cópias vendidas e um disco de platina. Entre 2014 e 2018, lançou outros dois discos de estúdio, dois EPs (extended play) e um DVD. A partir daí, lotou shows no Brasil e no exterior - foram dez apresentações nos EUA e Canadá -, aliando música e pregação.

Flordelis afirmava ser mãe de 55 filhos, a maioria afetivos, e a desburocratização da adoção foi a bandeira que a elegeu deputada federal, pelo PSD, em 2018, na onda bolsonarista. Foi a quinta mais votada no estado, com 196.959 votos, feito importante para quem havia tentado vaga de vereadora em São Gonçalo, em 2004, recebendo pouco mais de 2 mil votos.

Em 2016, pelo PMDB, ela havia tentado concorrer à prefeitura de São Gonçalo e chegou a figurar como pré-candidata. Mas o principal nome da coligação foi o então prefeito Neílton Mulim (PR), que concorreu à reeleição e terminou em terceiro lugar.

Nenhum dos projetos de Flordelis como deputada teve grande impacto nem foi aprovado. Um dos textos define regras para o armazenamento de dados de clientes por operadoras de cartão de crédito e débito. Outro institui um sistema nacional para localização de pessoas desaparecidas e bens subtraídos.

Um terceiro reconhece os direitos do nascituro, inclusive os gerados por meio de estupro. Outro obriga a exibição de mensagens de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes por emissoras de rádio e TV antes e após a transmissão de conteúdo sexual.

Em Brasília, Flordelis estava sempre com o marido, que chegou a conseguir um crachá para circular no plenário da Câmara dos Deputados. Anderson fazia as articulações. Conseguiu que ela fosse recebida pela primeira-dama Michele Bolsonaro, no Palácio da Alvorada e pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Também foi do pastor a articulação de um seminário sobre adoção na Câmara dos Deputados, realizado pouco mais de duas semanas antes de sua morte.

O mandato de Flordelis como deputada foi cassado em agosto do ano passado, quando o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados aprovou, por 16 a 1, parecer nesse sentido. Depois, acabaria presa, na espiral que tragou o seu sucesso a partir do assassinato de Anderson.

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