Manobras no arcabouço fiscal turbinam gasto do governo em até R$ 82 bi em 2024

Pelo menos duas mudanças já chamaram a atenção dos especialistas: a autorização para os gastos crescerem no máximo previsto pela regra em 2024 e a permissão permanente para o governo usar a inflação a favor de mais despesas em caso de repique dos preços até o fim do ano

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Economia ARCABOUÇO-FISCAL 18/05/23 POR Folhapress

(FOLHAPRESS) - Alterações no projeto de lei complementar do novo arcabouço fiscal estão garantindo recursos adicionais para o Executivo turbinar seus gastos fora dos parâmetros propostos inicialmente pelo próprio governo.

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Pelo menos duas mudanças já chamaram a atenção dos especialistas: a autorização para os gastos crescerem no máximo previsto pela regra em 2024 e a permissão permanente para o governo usar a inflação a favor de mais despesas em caso de repique dos preços até o fim do ano.

As duas manobras asseguram um espaço extra de até R$ 82 bilhões para gastos do governo petista em 2024 e ampliam a base de cálculo para os anos seguintes.

"Tentam garantir mais gastos, possivelmente atendendo a pressões. Essa é uma coisa ruim do substitutivo", afirma Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena.

A avaliação entre os especialistas é que o Ministério da Fazenda reconhece que terá dificuldades para elevar as receitas e cumprir os parâmetros, o que levaria a uma menor expansão orçamentária já na largada do arcabouço. Por isso, a pasta busca alternativas no Congresso para garantir recursos adicionais.

Pela regra em discussão, o limite de gasto do ano seguinte deve equivaler a 70% da variação da receita em 12 meses acumulados até junho do ano anterior, já descontada a inflação, mas sempre dentro de uma banda de 0,6% a 2,5%.

O relator do projeto de lei na Câmara que estabelece o novo regime fiscal, deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA), fixou que a despesa do governo pode ter um crescimento real de 2,5% no gasto, seja qual for a receita.

O governo vinha projetando um crescimento da despesa menor, de cerca de 2,3%. No entanto, a estimativa era generosa quando comparada à feita por parte dos economistas que trabalham com estatísticas macroeconômicas. A articulação para cravar o percentual de 2,5% reforça a percepção de que seria difícil chegar a esse patamar.

O ex-secretário do Tesouro Nacional Jeferson Bittencourt, economista da ASA Investments, fez as contas sobre o eventual efeito dessa mudança. Ele estima que a fixação do crescimento real do limite em 2,5% para o ano que vem pode render R$ 40 bilhões adicionais para o governo, na comparação com a expectativa inicial de um avanço pelo piso de 0,6%.

Há também um custo para a imagem do governo.

"Ficou ruim fixar no primeiro ano um percentual, já desviando da proposta original. Mostra dificuldade de o governo lidar com a sua própria regra", afirma o economista Manoel Pires, coordenador do Núcleo de Política Econômica e do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas).

Pires acredita que o governo terá de seguir fazendo ajustes para cumprir a regra, possivelmente em pouco tempo.

"Minha perspectiva é que se produzam alguns avanços nos próximos três anos, como melhora de primário e dos mecanismos de gestão", diz ele. "Depois, avaliamos algum ajuste mais estrutural na regra, mantendo o que funcionou e ajustando outras coisas. As regras mudam em outros países também na medida em que essas avaliações são feitas. É um debate evolutivo no mundo todo."

Pires estimava crescimento de pouco mais de 1% nos gastos pelos parâmetros da proposta apresentada originalmente.

O número é ligeiramente superior ao projetado pelo economista Bráulio Borges que, considerando as receitas até junho deste ano, trabalhava com um aumento real de 0,9% para as despesas dentro da regra.

"A sinalização é ruim porque mostra que o governo não quer fazer ajuste já no primeiro ano de vigência do novo arcabouço, e isso depois de ter um ano de forte expansão de despesas, por causa da PEC (proposta de emenda à Constituição) aprovada em 2022", afirma, em referência à proposta aprovada ainda na transição, que assegurou um adicional de R$ 168 bilhões.

Nas projeções de Borges, a fixação do crescimento da despesa no teto da banda também vai elevar o esforço necessário para cumprir a meta de resultado primário –a promessa do ministro Fernando Haddad (Fazenda) é zerar o déficit no ano que vem. Se antes o governo precisaria de R$ 150 bilhões, com a mudança vai ter de conseguir um adicional de receita da ordem de R$ 180 bilhões.

Procurado pela reportagem, Cajado explicou que a fixação dos 2,5% busca contornar os efeitos da desoneração dos combustíveis adotada no fim de 2022, que contribuiu para derrubar a inflação –que agora corrigirá o novo teto (já que um menor índice de preços diminui a correção das despesas).

Segundo ele, a proposta foi colocada na mesa de negociação e foi aceita por todos que participam das conversas sobre o novo arcabouço.

No entanto, a metodologia para o reajuste do limite de despesas pela inflação também foi alterada na tramitação do texto –o que deve impulsionar mais os gastos.

Pela proposta original, seria considerado o IPCA acumulado de janeiro a junho e o estimado pelo governo de julho a dezembro. Como estimativas estão sempre em uma área cinzenta, o relator considerou mais apropriado considerar o IPCA que de fato ocorreu nos 12 meses encerrados em junho do ano anterior do Orçamento.

Essa mudança também veio acompanhada de uma manobra que ajudou a turbinar as despesas na largada do arcabouço. A nova versão do texto autoriza o governo a fazer ajustes, caso o índice de preços tenha uma aceleração nos meses até dezembro.

Esse ajuste significa, na prática, a possibilidade de ampliar gastos no exercício seguinte. Via de regra, a incorporação dessa diferença seria temporária, mas o texto prevê uma exceção para 2024, quando o ajuste nos gastos será permanente. Isso ajudará a inflar a base de cálculo do limite para 2025 em diante.

Bittencourt, da ASA Investments, estima que só esse efeito pode dar mais R$ 42 bilhões para o governo gastar.

Isso porque a inflação acumulada em 12 meses até junho de 2023 deve ficar em 3,7%, enquanto o IPCA até dezembro é estimado em 5,8%. A diferença de 2,1 ponto percentual é quanto o teto crescerá a mais, de forma permanente, por causa da redação da regra.

Técnicos que participam das negociações do projeto admitem que a redação proporciona um espaço extra de pelo menos R$ 35 bilhões –menor que as estimativas do mercado porque há expectativa de queda no preço dos combustíveis.

Outros técnicos minimizam o ruído em torno desse ponto sob a justificativa de que o projeto original do governo já previa a correção do limite pela inflação observada até junho mais a projeção até dezembro. Para esse grupo, o valor extra já estaria contabilizado nas estimativas.

No mercado, outros economistas também apontam o espaço extra que o desenho da regra está proporcionando ao governo. "Nossa conta é de que o governo 'ganha' R$ 68 bilhões a mais para gastar no ano que vem", estima Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos. Desse valor, R$ 19 bilhões viriam da fixação do crescimento da despesa em 2,5%, e os outros R$ 49 bilhões, da diferença nos índices de inflação.

Procurada pela reportagem, a assessoria do Ministério da Fazenda disse que não comentará projeções feitas por instituições privadas e que o arcabouço segue o trâmite no Congresso.

"O Ministério da Fazenda apresentou o projeto do Regime Fiscal Sustentável e o submeteu ao Congresso Nacional. Neste momento, dentro da normalidade do sistema democrático, cabe ao relator e ao Parlamento debaterem a proposta."Veja ponto a ponto as principais mudanças feitas pelo relator:

OBRIGAÇÃO DE CONTINGENCIAR

Relator inseriu no texto a obrigação de o governo contingenciar despesas durante o ano, caso haja perspectiva de frustração de receitas ou aumento de outros gastos que ameace o cumprimento da meta fiscal no exercício. A tarefa é exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas o governo pretendia flexibilizar a norma por meio do novo arcabouço.- Relator inova ao propor que o contingenciamento das discricionárias deve ficar limitado a 25% de seu total.

INCLUSÃO DE GATILHOS DE AJUSTE

Caso as contas do governo apresentem resultado abaixo do limite inferior da meta, fica vedado:- Alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa- Criação ou majoração de auxílios, vantagens e benefícios de qualquer natureza- Criação de despesa obrigatória- Medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a manutenção do poder de compra- Criação ou expansão de programas e linhas de financiamento de dívidas que ampliem subsídios e subvenções- Concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributáriaAs medidas valem por um ano. Se no ano seguinte a meta for atingida, as sanções caem automaticamente.

O presidente da República pode propor ao Congresso a suspensão parcial ou maior gradação das vedações listadas acima, desde que demonstre que o impacto e a duração das medidas adotadas serão suficientes para a correção do desvio.

Medidas de ajuste não se aplicam aos reajustes do salário mínimo definidas em lei de valorização do piso.

No segundo ano seguido de descumprimento, passa a ficar vedado também:- Aumentos e reajustes em geral na despesa com pessoal- Admissão ou contratação de pessoal, a não ser para repor vacâncias- Realização de concurso público, exceto para repor vacâncias

DIMINUIÇÃO DA LISTA DE EXCEÇÕES AO LIMITE DE DESPESAS

O que o relator tirou da lista de exceções proposta pelo governo (ou seja, itens passam a consumir espaço no limite de gastos):- Despesas com investimentos do Tesouro em empresas estatais não-financeiras- Repasses a estados e municípios para bancar o piso da enfermagem- Fundeb (fundo da educação básica)- Ajuda federal às forças de segurança do Distrito Federal por meio do FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal)Como ficou a lista de exceções ao limite de gastos:- Transferências constitucionais a estados e municípios a título de repartição tributária- Créditos extraordinários, liberados em casos imprevisíveis e urgentes (como os decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública)- Despesas custeadas com recursos de doações ou de acordos judiciais ou extrajudiciais firmados em função de desastres- Despesas das universidades e instituições federais, e das empresas públicas da União prestadoras de serviços para hospitais universitários federais, quando custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios- Despesas custeadas com recursos oriundos de transferências dos demais entes da Federação para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia- Despesas com acordos de precatórios a serem pagos com desconto- Operações de encontros de contas com precatórios- Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições- Transferências legais a estados e municípios de recursos obtidos com concessão florestal

CÁLCULO DE RECEITAS

-Adiciona à lista de exceções do cálculo das receitas os programas especiais de recuperação fiscal que sejam destinados a regularizar a situação de devedores e gerar recursos à União. Com isso, o governo não poderá usar esse tipo de recurso para expandir a receita e, em consequência, a despesa do ano seguinte.- Relator manteve de fora do cálculo das receitas os demais itens propostos pelo governo. São eles toda a arrecadação com concessões e permissões, dividendos e participações pagos por estatais, e ganhos com a exploração de recursos naturais (o que compreende principalmente royalties com petróleo) -além da conta com transferências constitucionais feitas a estados e municípios.

BÔNUS PARA INVESTIMENTOS

- Passa a prever que apenas 70% do excesso de superávit poderá ser direcionado a investimentos. No projeto original, o excesso de arrecadação em relação à meta de primário poderia ser usado, de forma única, para bancar obras e outros investimentos sem afetar o limite de despesas. Haveria apenas um limite temporário, equivalente a R$ 25 bilhões (corrigido anualmente pela inflação), válido até 2028.

Tramitação

O que acontece agora, com a aprovação da urgência?

O projeto em regime de urgência pode ser votado rapidamente no plenário, sem necessidade de passar pelas comissões. O relator dá seu parecer durante a sessão no plenário. O texto é lido na tribuna, e há possibilidade de votação imediata. A votação do mérito está prevista para a próxima quarta-feira (24).

O que é preciso para a proposta ser aprovada no Congresso?

Projetos de lei complementar exigem maioria absoluta de votos favoráveis, isto é, mais da metade dos integrantes de cada Casa. Isso significa ao menos 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado.

Qual é o percurso final da tramitação?

Após passar pela Câmara dos Deputados, o texto segue para o Senado. Caso não haja mudanças, o texto vai à sanção presidencial.

No entanto, se os senadores fizerem modificações no texto, o projeto retorna para a Câmara, que terá palavra final –os deputados podem acatar as mudanças dos senadores ou restituir o texto originalmente aprovado na Câmara. Nesse caso, após a nova votação o texto é remetido à sanção do presidente da República.

O chefe do Executivo tem 15 dias úteis para sancionar o projeto integral ou com vetos parciais em alguns dispositivos, ou ainda vetá-lo totalmente. Todos os vetos passam por posterior validação do Congresso, que pode derrubá-los mediante maioria absoluta de deputados (257) e senadores (41).

Leia Também: País tem condição de crescer até 2% em 2024 com redução de juros, diz Haddad

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