História de racismo e morte de menino no Recife faz 3 anos sem punição

“São três anos de saudade, de dor e de frustração”. Do bairro do Barro, na periferia do Recife (PE), onde mora, ela inicia, às 6h30, diariamente a jornada. Da cabeça, a ideia de busca por justiça não cessa há exatos três anos

© Reprodução / Arquivo Pessoal

Justiça Caso Miguel 02/06/23 POR Agência Brasil

Luta e luto, decepção e ânimo, força e dor. Há também outros tantos sentimentos intraduzíveis que fazem parte da rotina incansável da pernambucana Mirtes Renata Santana, de 36 anos. “São três anos de saudade, de dor e de frustração”. Do bairro do Barro, na periferia do Recife (PE), onde mora, ela inicia, às 6h30, diariamente a jornada. Da cabeça, a ideia de busca por justiça não cessa há exatos três anos.

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Ex-trabalhadora doméstica, ela, atualmente, está atuando na Assembleia Legislativa de Pernambuco, em uma função de assessoria. O percurso envolve duas viagens de ônibus e uma de metrô. Depois do trabalho, segue para a faculdade, onde faz o curso de direito. Está no quinto semestre. Lá quer aprender como se faz justiça. Chega em casa tarde da noite. Nesta sexta-feira (2), porém, a rotina será diferente.

“A concentração da manifestação será às 14h em frente ao local do crime. Levaremos faixas e cartazes com as fotos do meu filho”. O filho é Miguel Otávio, morto aos 5 anos de idade. Mirtes vai voltar às proximidades do prédio de luxo residencial de onde o menino caiu, o Píer Maurício de Nassau (conhecido como Torres Gêmeas), no Centro do Recife.

A partir de lá, o grupo fará uma caminhada de pouco mais de um quilômetro até o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). No local, farão ato para homenagear o garoto. Ela pede que as pessoas, se for possível, compareçam de branco e azul.

Mirtes busca justiça depois da morte do filho, que ocorreu naquele 2 de junho de 2020. A então trabalhadora doméstica levou o garoto para o trabalho porque a creche estava fechada em função da pandemia.

Mesmo naquele momento em que o governo de Pernambuco havia definido que o trabalho doméstico não era essencial, Mirtes teve que ir ao serviço para não perder o emprego e a renda. Segundo o que foi testemunhado e apurado, a empregada foi incumbida de passear com o cachorro da então patroa dela, Sari Corte Real, enquanto a dona da casa fazia as unhas.

A empregadora, então, ficou com Miguel, mas o garoto pedia pela mãe. Sari, com a manicure em casa e sem paciência, colocou o garoto no elevador do prédio e apertou o botão do nono andar.  Sozinho, o menino chegou a uma área de maquinaria e caiu de uma altura de mais de 35 metros. Miguel chegou a ser socorrido, mas faleceu.

Sari foi condenada, em primeira instância, a oito anos e seis meses de reclusão por abandono de incapaz, seguido de morte. No entanto, ela recorre da decisão em liberdade, o que decepciona a mãe Mirtes. “Sou frustrada com o Judiciário de Pernambuco”. O caso está agora na segunda instância aos cuidados do desembargador Cláudio Jean Nogueira

Em nota à Agência Brasil, a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco afirmou que um recurso tramita na 3ª Câmara Criminal do TJPE, mas em segredo de justiça. “O relatório do recurso será encaminhado em junho para o desembargador revisor. Após a revisão, será incluído em pauta para julgamento”, apontou. O TJPE não esclareceu para a reportagem o porquê de o processo estar em segredo de justiça.

O Judiciário também informou que outro processo corre na área cível em relação a pedido de indenização. “O processo tramitou normalmente e, encerrada a instrução, o feito se encontra com prazo para alegações finais das partes (...)  Após as alegações finais, o processo estará apto a julgamento e será incluído na lista de feitos em ordem cronológica de conclusão”.

A assistente da acusação, a advogada Maria Clara D´ávila, diz que não entende por que o processo penal corre em segredo de justiça. “Nós fizemos uma apelação pedindo que fossem consideradas outras circunstâncias do crime e também em relação à sentença. Pedimos a retirada de alguns trechos. A decisão, apesar de ter condenado a ré, trouxe argumentos considerados racistas”. A sentença do juiz José Renato Bizerra incluía a possibilidade de investigar a mãe e a avó do menino por possíveis maus tratos.

O crime e o desfecho trágico fizeram com que o Legislativo local aprovasse a Lei Miguel, que proíbe que crianças até 12 anos de idade utilizem elevador desacompanhadas de adultos.

Diante de tantos absurdos, Mirtes entendeu que todos os acontecimentos que cercam a história de sua família têm relação com racismo.

“Eu não enxergava o racismo. Depois que eu passei por um período de formação política, comecei a trabalhar em duas organizações parceiras. Eu vi realmente que houve racismo no caso do meu filho. Infelizmente, o judiciário não enxerga que houve racismo, inclusive para me acusar”, lamenta Mirtes.  

Para o professor Hugo Monteiro Ferreira, diretor do Instituto Menino Miguel, entidade ligada aos direitos humanos na Universidade Federal Rural de Pernambuco, o crime explicita a cultura racista e elitista no País. “Se você quer resumir o Brasil, leia atentamente o caso Miguel. É o Brasil explicitado. É um País de maioria negra que foi constantemente retaliada pela lógica da branquitude e segregadora”, afirma o pesquisador.

Ferreira entende que um dos principais enfrentamentos que o instituto realiza é em relação à violência contra a criança e contra o adolescente, já que são situações que levam a uma convulsão social. “O Instituto Menino Miguel atua, por exemplo, na formação de conselheiros e conselheiras tutelares na tentativa da formação de melhora da atuação do sistema de garantia de direitos”. Ele afirma que a legislação evoluiu ao combater o racismo, mas essa é apenas uma das dimensões.

“A gente tem uma violência cometida até pelo próprio Estado contra a juventude negra. E tem muitas crianças negras mortas que estão associadas à etnia, à raça e à situação social. Não tenho dúvidas de que, se fosse o contrário (uma criança branca tivesse morrido), a Mirtes estaria presa e não respondendo em liberdade”, aponta.

A educadora Mônica Oliveira, da rede de mulheres negras de Pernambuco, também considera o caso do menino Miguel emblemático porque destaca como o racismo marca a vida de todas as pessoas negras desde antes do seu nascimento no Brasil. “Todas essas desigualdades são comprovadas em pesquisa. O Brasil é um país onde há pouca responsabilização pelo racismo. Do ponto de vista do imaginário da sociedade, o Brasil é um país que teria racismo, mas não racistas”.

Para a ativista, é necessário haver esforço grande para dar destaque a essa e todas as violências racistas. “Racismo é um sistema de opressão. A legislação por si só não resolve. Isso é um lado da questão. Temos um sistema judiciário que evita condenar pessoas por esse crime porque é inafiançável e imprescritível”.

O historiador Humberto Miranda, também pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco, observa que o caso do menino Miguel tem a ver com a relação entre “Casa Grande e Senzala”. “Eu costumo dizer que a mão que apertou o botão do elevador é aquela mesma mão da chibata. Que entendia a criança como um futuro empregado doméstico, como um futuro trabalhador braçal”.

Ele avalia que há na história um exemplo da objetificação dessa criança negra, pobre e periférica que “estava incomodando” a mulher em um momento que fazia as unhas. “A história dele revela esse ‘adultocentrismo’ branco e que nega a infância da criança negra. A gente assistiu a vários episódios onde a criança é colocada como aquele objeto dos interesses de adultos”

Quando chega a noite, Mirtes só pensa em estudar. Pensa no filho e no futuro que queria para ele. Lembra que antes dizia que queria fazer o curso de administração. O crime que o filho foi vítima fez com que ela mudasse de ideia.

“Eu resolvi fazer faculdade de direito justamente para ajudar outras mães a não passar pelo que eu venho passando hoje. Eu vou seguir a carreira de advogada e, mais na frente, vou para a promotoria”.

Ela está no quinto semestre do curso e adora o que está aprendendo, e também a força que tem recebido dos colegas e dos professores. 

“Eu me deparei com situações, com vários casos e vi que não é só o caso do Miguel. Eu falo também de crianças negras que foram mortas por conta do racismo e crianças vivas passando por isso. Assim, eu me fortaleço”. 

Aos finais de semana, diz que estuda sem parar. Olha as fotos do filho, cuida da casa e dos sonhos para abastecer a certeza da jornada do hoje e do amanhã. “Eu vou lutar”.

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