© Paulo Whitaker / Reuters
"Você sabe o que é caviar?/ Nunca vi nem comi, só ouço falar..."
PUB
A cantoria de Zeca Pagodinho monopoliza as três TVs de um dos 12 ônibus de turismo alugados para transportar cerca de 500 militantes da CMP (Central de Movimentos Populares) de São Paulo a Curitiba.
A caravana faz parte dos esforços da Frente Brasil Popular para levar 50 mil pessoas à cidade onde Lula terá seu primeiro cara a cara com o juiz Sergio Moro.
São 2h da madrugada de quarta (10), 12 horas antes do horário marcado para o depoimento. A turma do fundão está animada, revezando gritos de "vai, Corinthians!" com "fora, Temer".
Para o presidente Michel Temer, reservam uma canção que diz assim: "Pisa ligeiro, pisa ligeiro/ Quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro".
Caviar de fato não tem, mas tem vários potes Tupperware com torta de frango, bolo de cenoura, maionese e macarrão frio com milho, presunto e frango, do jeito que as formigas gostam.A fome bate depois de rodadas da vodca Kriskof sabor uva, que circula pelo pessoal num copo de plástico com fundo que pisca (como luzinha de Natal).Os passageiros atendem por apelidos como Shakira, Cheiroso, Carioca. Usam coletes vermelhos de movimentos sociais, distribuídos pela organização. Muitos viajaram deixando dois, três, quatro filhos a cuidado do cônjuge ou dos avós (a volta estava programada para o mesmo dia).Culpam Temer por cortes nos programas Leve Leite (responsabilidade da gestão João Doria) e pelas reformas trabalhista e previdenciária, que, se aprovadas, porão "tudo a perder". Dizem que estão indo ao Paraná "lutar por moradia".Porque, embora alguns acreditem que o PT não é inocente na Lava Jato, ainda veem o partido como o mais capacitado a batalhar pelas classes menos favorecidas.Com ele, "pobre pode ter um celular bom, uma geladeira decente", diz Fabiana Sena, 42, que usa seu celular bom para tirar fotos da paisagem.A impressão geral: a vida era mais fácil no governo Lula (2003-2010).Pré-PT: Maria Aparecida, 29, lembra que na infância em Alagoas, na falta do que comer, a refeição era a base de carne de gato com chuchu ("especialidade" do pai).Já sua irmã Priscila Brito, 32, baiana "de mãe diferente", lamenta a vida pós-PT."Quando Lula era presidente, ó, podia até fazer coisas erradas, mas ajudou muito os pobres", afirma Priscila, uma das mulheres mais vaidosas do ônibus, que caprichou na sombra azul para a viagem."Vamos pôr assim: nenhum [político] é inocente, todo mundo aprontou. Mas Lula deu mais benefícios -e Temer está tirando. Não passei fome no Lula. Passo fome hoje", diz a profissional autônoma, que vende lingerie e CDs no Brás (região central de São Paulo) e complementa a renda com R$ 124 de Bolsa Família.As irmãs Maria e Priscila, como a maioria no ônibus, moram na Terra Prometida, nome da ocupação com 300 famílias na zona leste paulistana.Priscila chegou lá cinco meses atrás, após se separar de uma companheira. Com ela foi o caçula de três filhos, Kaylon, 12, cujo nome aparece tatuado em letra cursiva no antebraço da mãe.Com uma garrafa de guaraná Dolly, ela escuta as orientações do líder da caravana, o advogado Raimundo Bonfim, 53.Coordenador da Frente Brasil Popular e militante de longa data, ele pede que todos joguem fora quaisquer objetos cortantes, "até faquinha de pão". A polícia, diz, "pode embaçar" e está procurando pretexto "para não deixar a gente chegar em Curitiba".Quase todos os ônibus com a militância de esquerda foram parados próximos à entrada de Curitiba. Entre objetos apreendidos, uma enxada e uma faca de cozinha, vistos como de "periculosidade".Eram só instrumentos de cozinha/trabalho, e a ideia sempre foi fazer um desagravo a Lula "de caráter pacífico", disse a Frente Brasil em nota. O veículo no qual a reportagem viajou passou impune "porque mostrei minha carteira da OAB", diz Raimundo.Quanto ao "goró", ainda que não haja lei contra passageiro beber na estrada, melhor ou guardar no bagageiro ou bebê-lo antes da fiscalização. A segunda opção vence.Raimundo lembra de quando viu Lula beber "uma cachacinha" em 1986. Como o futuro presidente fora um dia, ele era metalúrgico em São Bernardo do Campo (SP).Às 5h, Lula, então líder sindical, apareceu na porta de sua fábrica, virou a branquinha, subiu numa cadeira e discursou.Três décadas depois, Raimundo põe fé na inocência do ex-presidente e se diz desconfiado dos métodos do juiz Moro -quer saber por que há vários grão-petistas presos e nenhum tucano na gaiola, por exemplo.Ele orienta sua caravana a não cair nas provocações da direita pró-Moro. Zomba movimentos do outro lado que desistiram de vir a Curitiba, como Nas Ruas e Revoltados Online."Hoje é como campeonato, a primeira partida de uma grande decisão. E a direita... Meio esquisito isso de tirar o time de campo." Faltou quórum, alfineta.Davidson Lourenço, 24, diz também não querer encrenca com os "coxinhas" (a reportagem só ouviu uma manifestação mais violenta ao longo da noite, de um homem que prometia "quebrar tudo" se a direita os atacasse primeiro, porque "'nóix' não gosta de burguês").Davidson gosta e não gosta de Lula.Copo meio vazio: para ele, o petista tem, sim, alguma culpa no cartório. "Todo ser humano é subornável."Copo meio cheio: "Os caras falam muito mal, mas na época dele não tinha tanto desemprego".Ele trabalha com obras e diz que os bicos estão rareando. Quando menino, ajudava um tio em Búzios (RJ) a fabricar joias de prata e ouro. "Meu sonho era ser ourives." Diz não pensar mais nisso.