© Dibulgação
A cantora portuguesa Ana Bacalhau não é apenas a que cruzou o oceano Atlântico e subiu aos palcos do Brasil à frente da banda Deolinda. A prova é “Nome Próprio”, primeiro álbum solo da artista, disponível também nas plataformas digitais. Com contornos de biografia musical, as 15 faixas revelam, além da voz primorosa já conhecida dos brasileiros, alguém que se permite cantar a si própria, ser lunar e se revelar, com medos, incertezas, conquistas.
PUB
“O que eu sentia era que as pessoas olhavam para mim e tinham uma ideia que não era completamente fiel àquilo que sou. As pessoas me viam na Deolinda e achavam que eu era aquele sorriso, aquela energia. Só que eu não sou só sorrisos. Eu tenho um lado lunar, um lado escuro, como todos têm. Então, quis sair desta concha”, revela em entrevista exclusiva ao Notícias Ao Minuto.
Ana fez questão que a mesma exposição à qual se submeteu nas letras estivessem nas melodias de “Nome Próprio”. E mergulhou, sem medo, em ritmos tradicionais portugueses, mas acrescentou a eles o leque de músicas que gosta de ouvir. Um universo tão vasto que inclui "de Pearl Jam a Amália Rodrigues, Elis Regina, Janis Joplin, Miriam Makeba, enfim, muita coisa diferente”.
+ Ed Sheeran conquista certificado de diamante com "Thinking Out Loud"
Uma boa amostra é “A Bacalhau”. Na canção, que explica o título do disco, a cantora usa o corridinho, ritmo típico da região do Algarve, como base para um rap. “A tradição portuguesa não está tão afastada da anglo-saxônica, pode haver pontos em comum”, defende. Na empreitada, escolheu compositores de diferentes gêneros e lugares da música de Portugal. “Queria a impressão digital deles”, justifica.
O resultado é que nomes como Capicua, Jorge Cruz (Diabo na Cruz), Nuno Figueiredo (Virgem Suta), Miguel Araújo, Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa), António Zambujo e Márcia assinam algumas das canções. Como “Nome Próprio” nasceu praticamente ao mesmo tempo que Luz, primeira filha da cantora com o contrabaixista Zé Pedro Leitão, Ana reuniu músicos que confia. Além de Zé Pedro, a acompanharam Luís Peixoto (cordas), Luís Figueiredo (piano) e o brasileiro Alexandre Frazão (bateria).
Perfeccionista, a cantora admitiu que nem “o pior crítico consegue ser tão mauzinho” quanto ela mesma, mas ainda assim está feliz com o resultado da “confissão” que é “Nome Próprio”: "Fiz o que me propus: lançar um disco solo que não pudesse ser confundido com a Deolinda. Não queria me repetir. Era importante criar o meu mundo, e acho que consegui me representar da forma que me vejo”. Na entrevista a seguir, a cantora revela como canta o bullying (que sofreu quando pequena, por ser gordinha), momentos de família e sobre a vontade de voltar ao Brasil. Confira.
Como conseguiu conciliar a celebração dos 10 anos dos Deolinda, a maternidade e o primeiro disco solo?
Foi intenso. 2016 e 2017 foram anos de um crescimento enorme por tudo que está acontecendo na minha vida profissional e pessoal. Celebrei 10 anos com a Deolinda, em janeiro; fiquei grávida, fui mãe pela primeira vez. Engraçado que a Luz já estava presente desde o primeiro ensaio, em setembro. O crescimento dela acompanhou o deste disco, ajudou a sustentar o diafragma, iluminou o canto, digamos assim. É bonito saber que parto para esta etapa que agora inauguro, deste disco a solo, com ela, que me dá motivação para fazer tudo que fiz este ano.
Como foi o processo de decidir cantar com a própria voz?
Foi um bocadinho mesmo esta coisa do preciso. Obviamente que, desde pequena, quando descobri que tinha voz, imaginava ter um disco com meu nome, mas a vida me encaminhou para bandas, até a Deolinda - que é mesmo formada por quatro partes. O que comecei a sentir, depois de dez anos muito intensos com os Deolinda, é que havia partes de mim que não estavam representadas ali e nem faziam sentido de estarem representadas. Mas senti a necessidade de cantá-las. Na Deolinda, canto o outro, não necessariamente a mim. Tive um tempo, depois do “Outras Histórias” [quarto álbum de estúdio da banda], e senti: é agora ou nunca...
E já tinha as músicas? Por que três delas são suas...
A única que já tinha era “Maria Jorge”, que a Márcia compôs para um concerto especial de fado tradicional que fiz em Lisboa, em 2014. As minhas letras já existiam, mas sem música. “Deixo-me Ir”, na qual faço letra e música, tinha um rascunho, mas o álbum começou a existir mesmo quando comecei a fazer convites aos autores.
E em que o novo trabalho é semelhante ao dos Deolinda?
Tem a voz (claro), a energia de algumas canções, o sorriso. O que difere são todas as facetas que, de fato, não têm lugar nos universos estético e artístico da Deolinda.
Que facetas são essas... que Ana é essa?
A menina que está no quarto às escuras, sonhando acordada, falando consigo própria. Aquela que está ali sou eu, não é outra pessoa, não são histórias de outros que estou cantando. E havia este perigo de ser um álbum tão pessoal que as pessoas não sentissem como eu. Temi que não se relacionassem com a histórias das canções, mas, na verdade, não sou diferente de qualquer outro. Todo mundo tem medos e inseguranças. Gostaria muito que as pessoas se relacionassem, de fato, com esta confissão; de alguém que está aqui e tem as mesmas dúvidas e passou por momentos melhores e piores.
Você ainda tem medos, neste momento, depois de ter lançado o trabalho?
Tenho sempre. Obviamente queremos que as coisas que fazemos sejam bem recebidas. Não há aqui qualquer tipo de máscaras, estou de peito aberto, completamente sem proteção. Então, tem o medo de que as pessoas não compreendam, não gostem... por estarem tão emocionalmente ligadas à minha imagem na Deolinda que não consigam se conectar à deste disco. Mas temos que saber lidar com a rejeição também, não é? Faz-nos aprender e ter mais a certeza de quem somos ou não somos. Estes medos e inseguranças estão sempre lá, o medo de não conseguir fazer justiça às canções no palco. Mesmo nisso há dez anos, tenho sempre imenso medo de não ser suficientemente boa ao ponto de fazer justiça à música - porque, para mim, o mais importante é servir à música. E este medo ajuda-me, depois, a chegar ao palco e virar leoa [rarrrrrr, imita], com espírito de guerreira. Liga-se alguma coisa em mim...
O quê?
Eu me sinto uma árvore e as minhas raízes são o palco. Até pouco tempo, não era assim.Tinha medo de ser devorada pelo palco. Talvez por isso virasse leoa, para devorá-lo antes… (risos)
Até quando se sentiu assim?
Até há mais ou menos uns dois anos, quando comecei a sentir-me como agora, como esta imagem de que sou uma árvore e que minhas raízes, de madeira, são o palco.
Por que “Só eu mais ninguém não”, como canta na faixa “Só eu”?
Era uma expressão da minha avó. Aquela coisa tão portuguesa, tão humana, ‘estas coisas só acontecem comigo’... Aquela coisa do destino, mas ao meu tempo uma resistência a isto. Tem uma resignação, mas é gritada. É um pouco a razão de ser do fado: há um destino, que está traçado, mas revolto-me contra ele, grito, grito, cá do fundo [toca na barriga], grito, grito, grito, com a esperança de, se der, mudar o destino. (risos)
'Menina Rabina' parece um recado para uma versão mais jovem de si mesma….
É uma Ana menina que, por ter o nome Bacalhau e ser gordinha, foi vítima de bullying, hoje em dia se chama assim. Isso me marcou muito. E ajudou a construir este mundo artístico. A primeira forma de expressão minha nem foi a música, foi a escrita. Comecei a escrever muito, a criar mundos paralelos ao real, que não era tão simpático. Portanto, a Ana que está ali sonhando em encontrar a própria história em um livro, ou em escrever um livro, ou que está à noite sonhando acordada no quarto. É também para a dos 15 anos, quando descobri a minha voz, e para a de quando a Deolinda começou a dar certo e os sonhos foram realizados. Sou todas estas. ‘Menina Rabina’ é totalmente autobiográfico. Ainda me sinto esta menina hoje.
Há planos de levar o show de “Nome Próprio” ao Brasil?
Ai, quero tanto. Tenho muita estima pelos fãs do Brasil, que estão me apoiando muito neste disco...