Racionamento marca bairros de São Paulo com mais mortes por inanição

Na Brasilândia moravam 9 das 105 crianças de até 14 anos que morreram em decorrência da inanição de 2005 a 2015

© PixaBay

Brasil drama 29/10/17 POR Folhapress

Na Brasilândia, uma mulher revira a caçamba de lixo em busca de comida e se afasta quando cachorros começam a disputar um saco de lixo recém-rasgado. 

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A poucos metros, a dona de casa Tatiana Diniz Souza, 34, ajuda o marido a montar um barraco à beira do córrego do Bananal, para onde escorre o esgoto das casas de alvenaria construídas na margem oposta. O cansaço só não é maior do que a fome. "Não almocei hoje, a comida que tinha dei para as crianças", diz ela, que é mãe de quatro.

O bairro no extremo norte da cidade é um dos que mais sofrem com a desnutrição. Lá moravam 9 das 105 crianças de até 14 anos que morreram em decorrência da inanição de 2005 a 2015, segundo levantamento feito pela Folha de S. Paulo com dados do Datasus.

Enquanto Tatiana conta sua história, a vizinha Maria Amélia da Penha, 32, se aproxima e também compartilha sua realidade. Ela conta que não faz ideia do que irá comer no dia seguinte e muito menos seus cinco filhos, incluindo o bebê de 1 ano. "Ontem a vizinha me emprestou uma xícara de arroz para dividirmos em seis. Tem dez meses que não tenho dinheiro para ir ao mercado", diz.

A 47 km dali, no Grajaú, a situação é parecida. O bairro na periferia da zona sul aparece em terceiro lugar no ranking de mortes de menores de 14 anos por desnutrição com sete casos de 2005 a 2015.

Esses números não incluem as circunstâncias da morte, como doenças que causam má absorção e não têm ligação necessariamente com a fome, mas são os mais próximos disponíveis para retratar a falta de alimentos.

Na casa da moradora Ivone de Fátima Gonçalves, 39, a filha Maisa, 5, almoça na escola, mas sempre chega com fome em casa. Na semana passada, ela tinha banana para dar de lanche à menina, mas nem sempre é assim.

"Falta o que comer", diz ela, que conseguiu um cacho da fruta na associação Mulheres do Grajaú, que distribui alimentos doados. "Ganho feijão na cesta básica, mas não cozinho muito para economizar o gás", explica.

O pacote de feijão só aparece na despensa de Camila Oliveira, 35, porque os moradores da ocupação Jardim da União, também no Grajaú, onde ela mora, fizeram uma vaquinha para lhe comprar mantimentos.

Mãe de dois filhos, ela recebeu a reportagem depois de tentar convencer a filha que não tinha mais da vitamina que ela tinha acabado de fazer. "Só tinha um pouco de leite, ela tomou e acabou. Agora quer mais, mas não tem."

A situação é melhor na vizinha Francisca Cidiane, 32, que tinha acabado de dar arroz, feijão e carne de almoço para os quatro filhos. Mas nem sempre foi assim. "Teve dias que só tínhamos banana verde cozida na panela de pressão para comer", lembra.

DOAÇÕES

Basta uma buzinada para os moradores do Morro da Mutuca, em Parelheiros, no extremo da zona sul, saírem de seus barracos e tomarem a rua de terra. O som anuncia a chegada de doações e provoca correria e ansiedade.

As mulheres logo se enfileiram atrás da pick-up que traz cestas básicas, cobertores, litros de leite e pirulitos. A líder comunitária Marta de Jesus Pereira tenta organizar como pode a distribuição. "Falta tudo para essas famílias."

A dona de casa Nadia Virginia dos Santos, 43, comemora o fardo com mantimentos que conseguiu pegar, mas não por muito tempo. Sua preocupação é com a alimentação do caçula Erenildo, 5, que sofre de constipação crônica e pedras nos rins. Ele não pode comer gordura e só se alimenta de grãos integrais.

Como esses itens são caros, ela gasta quase todo o orçamento da família para manter a dieta do menino e sobra pouco para dar de comer para os outros dois filhos menores. As crianças almoçam na escola, e a cesta que conseguiu pegar dura no máximo duas semanas. "Sempre faltam verduras e a mistura. Adoro fruta, mas nunca dá para comprar", diz ela.Ela critica a farinata proposta pela gestão Doria. "Tem que ser comida de verdade."

Na casa vizinha, Germinia Pereira de Moraes, 54, se emociona ao falar da dificuldade em alimentar os três filhos. Ela abre a despensa e mostra o pacote de arroz pela metade, o único mantimento no armário. "Tem noites que não durmo pensando no que vamos comer no dia seguinte", diz Germinia.

A única fonte de renda da família são os bicos que ela faz em um sítio próximo. "Trabalho na enxada e me doem as costas. A médica diz que eu tenho que tomar o remédio com leite para não doer o estômago, mas não dá para comprar", diz ela, ao mostrar as mãos calejadas.

Para André Luzzi, conselheiro da ONG Ação da Cidadania contra a Fome, relatos como os descritos acima caracterizam situações de fome. "É grave quando a pessoa não tem segurança da regularidade com que vai se alimentar novamente."A incerteza em relação ao que vai colocar no prato dos dez filhos é constante na casa de Valdeilma Alencar da Silva, 40, também moradora do Morro da Mutuca.

Uma das crianças lhe pediu para comer um tomate, um dos poucos legumes que ainda restavam na geladeira para ela cozinhar uma sopa. Os alimentos são doados por feirantes em Parelheiros, onde ela faz bico aos finais de semana ajudando a montar as barracas e olhar os carros dos frequentadores.

Ela junta os legumes com a cesta básica que ganha uma vez por mês da igreja que frequenta. A família numerosa acaba com os mantimentos em duas semanas. "Quando acaba, invento sopas e peço sobras de pães na padaria."As crianças saem de casa para a escola sem comer nada e dependem da merenda para almoçar. "A vida é muito estreita", diz a mãe.

VIADUTO

O casal de desempregados Jeferson Oliveira da Silva, 29, e Kátia Regina de Araújo, 36, nunca sabe ao certo como serão as refeições do dia. Eles vivem na comunidade do Cimento, à beira da Radial Leste, junto do viaduto Bresser, onde cerca de 500 moradias improvisadas com madeira formam a favela.

A renda por meio do programa Bolsa Família, de aproximadamente R$ 200, não garante as três refeições diárias para a família, que inclui os filhos Lucas, 10 e Gabriel, 9.

É na escola em que estudam que os meninos encontram cardápios balanceados no café da manhã e no almoço. Quando não estão em dia de aula, a dúvida persiste.

"Hoje eu comi só feijão mesmo. Os meninos comeram miojo agora, mas vão comer de novo na janta", disse Silva. Naquele dia, eles faltaram no colégio.

Do barraco ao lado vinha um agradável cheiro de alho frito na panela. Ali um homem preparava a refeição do dia: arroz, feijão e couve. A reportagem perguntou ao vizinho se ele costumava dividir com os demais moradores. "É difícil, não tem muito. Aqui é meio cada um por si", disse.

Sobre a farinata que Doria cogita oferecer como complemento alimentar, Silva diz que até aceita provar. "Comida a gente quer. A gente tem fome, o que vier é lucro."

Outros moradores da comunidade rechaçam a ideia, mesmo sem conhecê-la em detalhes. "Eu não como resto feito com comida vencida. A gente precisa de comida. Prefiro comer a bolacha que comi no almoço", disse a desempregada Poliana, 23. Com informações da Folhapress. 

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