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A criação de uma síntese de sua obra e de seu pensamento sobre a cultura brasileira perseguiu o escritor Ariano Suassuna (1927-2014) ao longo de 33 anos. Perto de morrer, em 2014, ele concluiu os dois primeiros volumes dos sete previstos para a série "A Ilumiara", nome inspirado nos anfiteatros de ancestrais.
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O fascínio pela arte rupestre, vista como um painel do poder criativo dos brasileiros, se estende às ilustrações do "Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores", a esperada autobiografia de Suassuna, agora lançada pela editora Nova Fronteira.
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Os dois volumes concluídos, "O Jumento Sedutor" e "O Palhaço Tetrafônico", se dividem em quatro capítulos estruturados em cartas "aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino", dedicadas aos povos formadores do Brasil, numa reverência a índios, negros, portugueses, árabes, judeus, ciganos, japoneses, alemães, entre outros.
Suassuna define as narrativas como "Cartas, Depoimentos-Entrevistosos e Diálogos-de-Narrativa-Espetaculosa", abordando episódios biográficos e ideias sobre cultura popular e erudita. Com heterônimos, o dramaturgo contraria a autobiografia tradicional e assimila vários gêneros literários, compondo relatos intertextuais e polifônicos raros na memorialística brasileira.
"Ele consegue unir, numa única narrativa, todas as formas literárias possíveis e imagináveis, todas as maneiras de se narrar algo: romance, poesia (os versos são transcritos como se fossem prosa), teatro, ensaio, autobiografia, entrevista, cartas, artigos de jornal e assim por diante", avalia o professor e ensaísta Carlos Newton Júnior, prefaciador da "Ilumiara".
"Talvez seja este o romance mais pós-moderno de nossa literatura, e isso realizado por um escritor considerado 'arcaico'", acrescenta o especialista na obra do fundador do Movimento Armorial, seu amigo e ex-professor de Estética, que lhe confiou a missão de digitar os originais, no Recife.
O líder político paraibano João Suassuna (1886-1930), assassinado no início da Revolução de 1930, é uma presença expressiva na narrativa do filho. Este costumava relacionar o impulso literário ao trauma da morte violenta do pai.
"("¦) A 'Ilumiara' é uma espécie de Orestíada, narrada, não por Ésquilo, mas sim por aquele que, na trama, seria um outro Orestes ou um novo Hamlet (ambos filhos de Pai assassinado, de um Rei assassinado). Mas este 'Hamlet' acertaria a vencer sua dor no Palco e na Estrada, por meio das Armas que Deus lhe concedeu -'o galope do Sonho', do Rei, e 'o Riso a cavalo', do Palhaço", diz o heterônimo Antero Savedra.
A carpintaria de "Dom Pantero" ficou ainda mais complexa por envolver a concepção de uma tipografia própria e de numerosas ilustrações de Ariano Suassuna.Suassuna era um pesquisador de figuras da arte rupestre. Um filho do escritor, o artista plástico Manuel Dantas Suassuna, organizou os vídeos mencionados no romance, que podem ser vistos por meio de QR Code.
O artista gráfico Ricardo Gouveia de Melo, designer do livro, desenvolveu para Suassuna uma tipografia específica, não mais baseada no alfabeto armorial dos anos 1970.
"Ele fez desenhos à mão com traços mais sinuosos, com uma aparência diferente daquela rigidez do ferro (de marcar o boi). Ele já estava pensando nesse romance e numa tipografia como se fosse inscrita na pedra", lembra Ricardo, também feito personagem da "Ilumiara".
Em dezembro de 2013, em entrevista ao repórter Fabio Victor, na Folha de S.Paulo, Suassuna apresentou o heterônimo por trás da máscara de Dom Pantero: "O negócio ficou mais complexo, porque Antero Savedra desdobrou-se. Fiz de Antero Savedra um alter ego mais próximo de mim".
Portando nomes reais ou acrescidos de sobrenomes ficcionais, amigos surgem em epígrafes e são incorporados pelo escritor como personagens dos diálogos sobre a cultura brasileira e seu projeto literário. As atrizes Inez Viana e Marieta Severo, os diretores Aderbal Freire-Filho e Luiz Fernando Carvalho, os poetas José Laurenio de Melo e Adélia Prado se situam entre esses interlocutores de Dom Pantero na "Autobiografia Musical, Dançarina, Poética, Teatral e Vídeo-CinematoGráfica".
Transformada em personagem, a arqueóloga Niède Guidon diz que Suassuna se interessava por seu trabalho de preservação e pesquisa no Parque Nacional Serra da Capivara.
"Ariano era uma pessoa extremamente culta, tinha um interesse universal por todas as coisas que dizem respeito à cultura humana."
Em 1982, cativada pelo "Romance d'A Pedra do Reino" (1971), a fotógrafa Maureen Bisilliat pediu ao escritor uma pequena apresentação para o livro "Sertões - Luz & Trevas". Ele aceitou a encomenda, mas subverteu o prefácio e criou em uma centena de páginas a história "Maurina e a Lanterna Mágica", protagonizada pela artista. "Ou publica tudo, ou nada", exigiu o dramaturgo.
Por falta de espaço, o relato permaneceu inédito. A série fotográfica de Maureen terminou dedicada ao paraibano, "terceira ponta do triângulo literário, místico, telúrico, mítico, sertanejo -Euclides, Guimarães, Suassuna".
Ela se comove ao saber da presença no novo livro. "Ele foi um dos grandes. Tive a sorte de visitar o Guimarães Rosa e de conhecer um pouco mais o Suassuna. É muito difícil ter a sabedoria, a espontaneidade e o humor dele", diz Maureen, que quer conversar com os herdeiros sobre a publicação do inédito.
O cineasta paraibano Vladimir Carvalho aparece nas memórias durante a gravação de "Ariano Suassuna em Aula Espetáculo" (1997), pioneiro registro audiovisual da popular faceta de conferencista.
Três meses antes da morte do conterrâneo, Vladimir o entrevistou para o documentário "Cícero Dias, o Compadre de Picasso" (2016). "Ele me mostrou a parte do visual do livro, num entusiasmo de criança, e leu uns trechos pra mim", relembra o diretor.
O personagem Gilberto Francis parece mesclar o sociólogo Gilberto Freyre e o jornalista Paulo Francis, que divergiram de Suassuna. Um trecho autoirônico parodia uma reprimenda desse crítico imaginário ao dramaturgo: "O referido Antero Schabino conseguiu a façanha de, juntando-se a Rubem Braga, Miguel Arraes e Oscar Niemeyer, entrar no privilegiado grupo dos maiores chatos do Brasil".
Suassuna "aproveita para responder, com muito bom humor, a críticas que recebeu ao longo do tempo, algo que já havia feito, de forma mais velada, na 'Farsa da Boa Preguiça', através do personagem Joaquim Simão", diz Carlos Newton.
Os mestres de Ariano, onipresentes em suas aulas e entrevistas, voltam a aparecer nas citações de "A Divina Comédia" (Dante), "Dom Quixote" (Cervantes), "Os Sertões" (Euclides da Cunha), "Eu" (Augusto dos Anjos), "Triste Fim de Policarpo Quaresma" (Lima Barreto), "Scaramouche" (Rafael Sabatini) -e, sem surpresa, Homero, Shakespeare e Machado de Assis.
A Nova Fronteira lançará quase 20 livros de Ariano Suassuna nos próximos anos, conjunto que envolve teatro, romance, poesia e ensaio, e inéditos como a peça "As Conchambranças de Quaderna" (1987), encenada, mas nunca publicada.
"Auto da Compadecida" (1955), próximo lançamento, terá ilustrações de Manuel Dantas. "Ele queria dar uma unidade estética à obra, como se fosse uma coleção", afirma o filho, que deve organizar em Pernambuco, neste ano, uma exposição com gravuras e manuscritos do pai. Com informações da Folhapress.
ROMANCE DE DOM PANTERO NO PALCO DOS PESCADORES
AUTOR Ariano Suassuna
EDITORA Nova Fronteira
QUANTO R$ 189,90 (1.024 págs.)