© Divulgação/Daniel Trudu
Na tradição religiosa os santos têm aura e são capazes de operar milagres. Nós, reles mortais, teríamos hoje a mesma coisa sem sermos santos - só que no lugar da atmosfera de luz estaríamos envolvidos por uma aura eletrônica. Quem chama a atenção para este manto invisível de informações à nossa volta é Derrick de Kerckhove, o mesmo que revela como a partir do acesso a uma série de dados na web também somos capazes de produzir os nossos próprios milagres.
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O belga de 73 anos ficou conhecido mundialmente como o discípulo de Marshall McLuhan - que profetizou, ainda na década de 1970, que o mundo se transformaria em uma imensa “aldeia global” conectada pela eletricidade, hoje hiperconectada pela internet. Além de colaborar como co-autor do teórico canadense e coordenar por duas décadas o Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia, na Universidade de Toronto, Kerckhove é um dos mais importantes estudiosos da relação entre a sociedade e as tecnologias digitais da nossa época.
Autor de “A pele da cultura” (Annablume, 2009), ele conversou com o Notícias ao Minuto Brasil enquanto participava do evento “Redes e Tecnologias para a Sustentabilidade”, promovido pelo Instituto Toposofia em Roma, na Itália, país em que vive a maior parte do ano. Nesta entrevista exclusiva, além de traduzir conceitos sobre a nossa interação com as tecnologias digitais, o pensador atualizou a teoria freudiana para “inconsciente digital”, alertou sobre fake news, comparou a série Black Mirror ao modelo tecnológico chinês e explicou como a iniciativa brasileira do mutirão estaria próxima ao que ele considera “felicidade urbana”.
Você afirma que vivemos hoje em três tipos de ambientes: o físico, o mental e o digital. O que significariam essas divisões?
Digital, virtual, numérico… são espaços diversos que ocupamos. Passar o dedo sobre a tela do celular, mexer o cursor sobre o monitor do computador, colocar óculos RFID, andar sobre a realidade virtual, jogar Pokémon Go… Fazer tudo isto é penetrar num mundo que não é precisamente aquele da mente nem aquele do físico, mas faz parte um pouco dos dois. É mais vizinho do mental, evidentemente, porque se trata da chegada da eletricidade ao estado do conhecimento.
Quando a vida começa, começa com o calor, a luz e a energia. E se fizermos uma comparação do corpo humano com o digital, que cada vez mais está dentro do corpo, esta parte seria a energia. No momento em que a eletricidade começa a traduzir uma linguagem, de se ocupar do conhecimento ou da sua transmissão, estamos diante de uma expressão cognitiva completamente nova. A linguagem é, cada vez mais, suportada pela eletricidade, acelerada, multiplicada e distribuída por tudo e por toda parte. Uma situação que agora é física e que estamos vivendo as consequências.
Você afirma que a nossa era está repleta de “santos eletrônicos”. Como explicaria este conceito?
Somos nós, é você, sou eu. Antes de tudo, quando você encontra alguém que não conhece, o que faz? Você vai ao Google, ao Wikipedia, a qualquer lugar em que possa encontrar informações sobre a pessoa. Então já parte de uma sombra digital que nos precede, não necessariamente que nos segue. A outra coisa é que sendo sempre emissor de informações, em todos os movimentos que faça, você já está deixando dados. A cada passo que damos, a cada lugar que visitamos, tudo isso é organizado para dar informações sobre nós a qualquer um que as procure. Isso é o que eu chamo de inconsciente digital: tudo o que as pessoas sabem de você que você não sabe, mas que tem uma força sobre você muito maior que aquela apontada por Freud.
Qual seria a diferença entre o inconsciente digital e o inconsciente freudiano?
Freud é um génio porque encontrou o inconsciente, entendeu que temos motivações que não são visíveis. Ele abordou essa ideia através do complexo familiar – pai, mãe, filhos – para chegar a uma teoria, como aquela do édipo entre outras, que são realmente bravas. Não é que eu discurse contra Freud, mas quando você pensa na importância da base familiar na sua vida, sim, é importante. Mas se você pensa na quantidade de escolhas que fazemos no dia a dia, a partir de estímulos que não reconhecemos nem mesmo como estímulos, é a mesma coisa que acontece com as suas teorias relacionadas ao pai e à mãe.
O inconsciente digital tem um poder imenso. Quantos selfies fizemos hoje? Cada vez que fazemos um selfie é para persuadirmos que ainda estamos aqui, que o nosso ser ainda está identificado com esta pessoa que aparece no selfie. Eu penso que esta é uma das manifestações tecnológicas mais míticas do nosso tempo.
Você faz uma analogia entre “Black Mirror”, série da Netflix, e o modelo chinês de tecnologia. Ficção e realidade estariam assim tão próximos?
Eu penso que o Black Mirror mostra um modelo melhor de tecnologia. Gosto do episódio ["Nosedive"] da garota que aparece em frente ao espelho se maquiando, olhando nervosamente o telefone para ver se conquistou curtidas a mais. Eu comparo a série com a China porque o país decidiu agora atribuir pontos individualmente a alguns de seus cidadãos, segundo o seu valor social, utilidade, educação etc. Isto é uma das consequências do individualismo. Nós temos muito mais dificuldades em aceitar essas coisas do que as pessoas da China, Coreia ou Cingapura. Os asiáticos são muito mais conectados uns com os outros, até mesmo mais altruístas que nós, ocidentais, em certo nível. Nós começamos a nos tornar completamente individualistas, tentamos caminhar na direção oposta, mas não entendemos bem como negociar isto.
Como a tecnologia, em especial o Big Data - imenso volume de dados concentrados nas redes digitais –, pode interferir na expectativa de vida dos mais diversos países?
Esta questão pede que vejamos com mais detalhes. Em Hong Kong a expectativa de vida é mais alta, de 82 anos. Em Nova Iorque são 79 anos; em São Paulo, 70; em Joanesburgo, 50 anos – o que nos leva quase à Idade Média. Existem diversos fatores que contribuem para estas médias, como a relação com a qualidade de vida: a concentração urbana, o quanto você recebe, o sistema de saúde local etc. Há um outro conjunto de fatores mais relacionados aos problemas sociais, como a criminalidade.
No caso de Joanesburgo, a estimativa de vida cai pelo fato de que muitos jovens são assassinados, por conta da criminalidade corrente. Eu uso isto como exemplo para mostrar como o Big Data pode ajudar a chegar a conclusões úteis sobre uma cidade, mostrar os seus problemas e fazer uma comparação entre diferentes contextos do mundo.
De que forma os fake news (notícias falsas) fazem perder a ideia de “referente”? Quais os riscos desse processo?
Esta é uma questão complexa e eu agradeço por fazê-la. Quando eu digo “cão”, a palavra é o significante: ela não pode surgir na sua mente se não houver um cão na realidade, ou seja, um referente. Quando uma porta-voz do presidente Donald Trump diz que ele teve grande sucesso em determinada inauguração em Washington, sendo que no vídeo do evento percebemos que a informação não corresponde à realidade, perdemos o referente. É a tal situação: eu digo isso (significante), vocês escutam aquilo (significado), a ideia de referente (real) se perde.
O problema é que nós agora somos vítimas de uma quantidade imensa de fake news. Eu mesmo já fui pego pelo menos duas vezes no Facebook. Em uma delas levei a sério falsas confissões no leito de morte de bombeiros que ajudaram pessoas em um acidente em Nova Iorque. Recebi um monte de insultos! (Risos). A partir do momento em que chega uma notícia falsa, você pode facilmente cair no fake news porque não vê o contexto.
E como o Big Data pode ajudar a reconstruir essa ideia de referente?
Nesse ponto os algoritmos são indispensáveis, pois criam uma sucessão de comandos para chegar a uma conclusão, baseada na inteligência artificial e nos Big Data. Eles nos levam não à verdade absoluta, mas à autoridade. Trazem muito mais autoridade que a declaração ideologicamente tendenciosa ou politicamente experiente, comum no discurso dos políticos ou mesmo de alguns jornais.
Isto pode nos ajudar a tomar decisões importantes: se devemos aceitar uma medida anunciada pelo governo, se devemos votar nesses gestores, se devemos apoiar suas diretrizes políticas e sociais. Podemos lançar mão deste elenco de dados revelados pelos Big Data e pelos algoritmos para enfim dizer: “eles nos mostram que é assim”.
Você está desenvolvendo um projeto de “felicidade urbana” que busca envolver a cidade, seus moradores e as redes sociais. Em que consiste?
Torre Annunziata, velho porto de Pompeia [província de Nápoles, no sul da Itália], era uma cidade cheia de belezas. Abrigava um porto que nos anos 1930 servia como ponto de partida de metade do comércio de massas da Europa. Devido à máfia, a cidade foi toda estragada, perdendo a vida elegantíssima de décadas atrás. Então pensei: como resistir?
Assim surgiu a ideia de “felicidade urbana”, que para mim não vem de dinheiro nem de serviços, mas das próprias pessoas. Se você envolver o povo primeiro, se provocar nas pessoas o sentimento de pertencimento à sociedade, elas vão entender que vem delas a felicidade. É a mesma coisa do princípio brasileiro de mutirão. A diferença é que no mutirão é tudo muito mais preciso: são as pessoas que fazem as casas, que se juntam para reconstruir um barco velho, por exemplo.
O projeto de felicidade urbana visa criar uma obra de arte coletiva, com um peso que não é só material ou físico, mas que viva também no espaço virtual, no qual os moradores possam construir a narrativa da cidade, para entenderem que a história do local é a própria história da sua vida. Procurarem as televisões e os jornais, lançarem narrativas transmídias com esculturas, vídeos, fotografias, entrevistas com pessoas… A ideia é se apropriar desse instrumento potente, que são as redes, para criar uma memória da cidade, contada e compartilhada por sua gente. Espero que funcione.