Johnny Hooker é como um desenho do conceito “Zoon Politikon”, de Aristóteles. Animal político por natureza, o artista gay e nordestino provoca padrões e solta a voz no coro de brasileiros que cantam posicionamentos. “Toda voz é política, assim como todo corpo”, defende o pernambucano. Nesta segunda-feira (19), “Flutua” - que é como um hino LGBT - alcançou dois milhões de audições no Spotify.
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Sétima composição de Hooker a somar tal marca na plataforma, o hit foi apresentado ao país no segundo disco solo, “Coração”, lançado em meados do ano passado. No palco do último Rock in Rio, “Flutua” foi cantada com direito a beijo entre o pernambucano e a cantora negra e trans paulista Liniker. “Foi um momento icônico, que marca um tempo na música, no Brasil. ‘Flutua’ tomou outra proporção por conta daquela performance”, opina. No YouTube, o videoclipe foi lançado no dia de Natal e se aproxima de dois milhões de visualizações.
+ É um pouquinho de Brasil. Mas tem Alemanha, Itália, Portugal...
A voz clara e poderosa de Hooker não é golpe apenas na homofobia, no entanto. O próprio sobrenome artístico [prostituta, em inglês] é outro posicionamento. Escolhido quando ainda era vocalista da Candeias Rock City, banda punk criada em Pernambuco na segunda metade dos anos 2000, Hooker quis homenagear a então namorada. Uma menina que era, nas palavras dele, “livre” e criticada por isso. “Eu queria um nome para mim e pensei em ‘Monange Daydream’, de [David] Bowie, e disse a ela: ‘I'll be a rock 'n' rollin' bitch for you’, eu vou ser”, recorda o artista que imigrou para o Rio de Janeiro, em 2014, para gravar a novela “Geração Brasil”.
A defesa da mulher se fará presente em outra canção de “Coração”, “Corpo Fechado”. A faixa, gravada com participação de Gaby Amarantos, será transformada em videoclipe. "Quero abordar a questão do relacionamento abusivo, no país que tem tanta violência contras as mulheres e até mesmo nas relações gays. Abordar esta coisa do machismo estrutural dentro de uma relação que era para ser amorosa”, antecipa.
“Corpo Fechado” estará ainda na trilha sonora de “Onde Nascem os Fortes”, série da Rede Globo que estreia em abril. “É a terceira música minha que entra em projetos de [José Luiz] Villamarim. ‘Pense em Mim’ entrou em “Justiça” (2016), depois ele me pediu para regravar ‘Como vai você’ para “Os dias eram assim” (2017) e agora ‘Corpo Fechado’”, contabiliza. Antecipou ainda que vai cantar uma versão de “Beija-flor”, da Timbalada, para a próxima novela das nove da emissora.
Radicado em São Paulo há seis meses, Hooker passou duas semanas entre a Espanha e Portugal logo após o carnaval. Dentre o lançamento de “Coração”, a repercussão do Rock in Rio, a crise política do Brasil e uma depressão, Hooker quis descansar. Lisboa, no entanto, não deu trégua ao pernambucano - que acabou finalizando antigas negociações para a primeira turnê na Europa, em agosto, e a inclusão de três músicas na trilha sonora do filme “Golpe de Sol”, do português Vicente Alves do Ó.
De um hotel no centro da capital portuguesa, antes do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL - RJ), Hooker conversou sobre genocídio de negros e pobres no Brasil; de militância; de depressão; da corrupção “arraigada no país”; citou Ney Matogrosso e confessou ter ficado surpreso com o fato de ser reconhecido em Portugal - onde viveu “um dos momentos mais bonitos da vida”. Confira.
Como foram estas férias em Portugal e na Espanha?
A viagem para Lisboa é a primeira folga que tiro desde 2013. Desde ‘Tatuagem’ [filme para o qual gravou a música “Volta”], não tinha tido tempo para respirar: veio ‘Macumba’ [disco solo de 2015], depois ‘Coração’, o Rock in Rio, tudo me engoliu. Dei uma parada de duas semanas - passei pela Espanha também.
Você é um turista que desliga, relaxa ou cheio de ideias?
Não sou aquele turista neurótico. Tudo programado. Gosto de entender o mood [humor] do lugar. Com calma. E ver como as coisas funcionam. E em Lisboa foi ótimo porque tenho um monte de amigos... só fiquei doente porque não parei.
Você passeou incógnito?
Não. Fui reconhecido em muitos lugares, de gente jovem, de balada. Os portugueses adoram meu trabalho. Fiquei impressionado. Eu fui em um bar, as pessoas me reconheceram, fui em um restaurante, me reconheceram. E é outra maneira de se aproximar, sem tanta euforia quanto os brasileiros… eles se aproximam bem contidos e falam ‘adoro seu trabalho’.
Uma publicação partilhada por Johnny Hooker (@hookerjohnny) a 27 de Fev, 2018 às 2:59 PST
Como foi encontrar um cover, que nem sabia que tinha, na noite de Lisboa?
Foi um dos momentos mais bonitos da vida. Por que foi inesperado, foi o acaso. A gente foi em um bar clássico da noite de Lisboa, em que drags fazem show. Estava me divertindo com meus amigos e recebi este amor além-mar. Quando ouvi os primeiros acordes, disse ‘é minha música’. E lá estava ele, com visual igual, "maquiagem de gatinho", eu achei muito bacana. O Vitor Parente é português, namora com uma drag, e faz vários shows em clubes de Lisboa como Johnny Hooker. Portugal foi incrível porque me fez perceber quanto o meu trabalho já andou, como as pessoas amam, ouvem. Como a música é maior. Por isso não gosto desta coisa sacra do ícone, com a proporção que "Flutua" tomou.
O que é sagrado mesmo é a arte. A emoção e não você.
Como três músicas suas acabaram na trilha sonora de “Golpe de Sol’, do diretor português Vicente Alves do Ó?
São três músicas, praticamente uma trilha sonora (ri). “Página Virada”, “Você ainda pensa” e “Macumba”. Vicente tentou me contatar bem na época do Rock in Rio, naquela confusão, mas conseguiu me encontrar aqui. A produtora dele é vizinha ao hotel. Tem de estar atento aos sinais, como diria o ícone Ney Matogrosso.
E sobre a celeuma com Ney Matogrosso, ainda tem algo a falar?
Não, não, não, não. Chega.
Você acha que arte é militância, ou depende de quem faz?
Acho que a arte não precisa ser militante, mas é política. É indissociável. Toda voz é política, todo posicionamento é político, todo corpo é político. E nos momentos de urgência, como vivemos agora, onde as coisas estão caminhando para um lado obscuro no Brasil, é urgente provocar discussões. Além de sermos o país que mais mata LGBT no mundo, somos um país que vive um genocídio, um extermínio da juventude negra, e níveis alarmantes de violência contra a mulher. Isso tudo vem de falhas estruturais abismais de educação, que permite o crescimento do fundamentalismo religioso, que cresce onde há desesperança. Chegou a hora de pararmos de brigar entre nós… não sou inimigo de nenhum outro artista LGBT, ninguém está aqui para ser inimigo… está na hora de se juntar e encarar os verdadeiros inimigos: o fundamentalismo, o retrocesso, esses genocídios de minoria.
Então, toda arte já está política, assim que nasce. Marília Mendonça, por exemplo, que eu adoro, é superpolítica, toca em questões do feminismo. A figura dela toca em outras questões, como a gordofobia. Para mim, como gay e nordestino, é parte do que sou, tenho pais artistas, cresci em um ambiente político. Acho muito bonito que tenha toda esta geração - Liniker, Lin da Quebrada - que seja geracional e acho legal observar que, cronologicamente, foi ‘Macumba’ que iniciou o momento, fomos vendo o LGBT chegando ao mainstream.
O Rock In Rio foi muito deste posicionamento político, não foi?
Era impossível não me pronunciar. Com o Brasil todo vendo, e a gente com a chance de falar alguma coisa para as famílias... Vivemos um golpe branco de estado, todo retrocesso, todo ataque às minorias e a chance de falar alguma coisa, em um domingo à tarde... Então, teve este momento que foi explicitamente político, mas foi uma grande celebração do amor, da liberdade, da igualdade. Não poderia ter sido de outro jeito. E para mim tinha de ser com a Liniker, que é uma mulher travesti-genere, negra, da periferia, com um cara gay nordestino. E o beijo… não discursamos, o beijo foi o discurso grande. Foi uma grande tomada de posição, um momento icônico, de um tempo na música, no Brasil. ‘Flutua’ tomou outra proporção por conta daquela performance, de hino.
Você falou que 2017, apesar do Rock in Rio, foi um momento difícil na sua vida. Por quê?
Eu acho que a gente que é artista é idealista por natureza, né? Lidar com esta explosão, este sucesso, sendo um artista independente, não tendo uma multinacional por trás, quebra um pouco o coração da pessoa… porque você vê que as coisas não são feitas de maneira transparente. O Brasil tem uma cultura de corrupção que é arraigada em tudo, todos os mercados, todos os lugares… e isto quebrou um pouco meu coração. O momento político também me decepcionou muito. Parecia que a gente estava chegando em algum lugar e aí ‘volta, volta, volta, volta’. Rola uma desesperança, um desencanto… foi muito para processar.
A coisa de ser figura pública lhe isola um pouco, teve o fim de um casamento… então, “Coração” é um disco que é esta tentativa de sobreviver… aquelas palminhas em ‘Touro’ [música que abre o disco] são a urgência da vida chamando de novo, sabe? A vida urge. É um disco sobre um momento pessoal, micro e macro. “Macumba” é muito mais cabaré, no sentido teatral, crônicas de histórias de amor. “Coração” é mais combativo porque eu precisava sobreviver.
É mais fácil ser gay hoje do que já foi?
É mais fácil em alguns aspectos porque o mundo caminhou, mas o Brasil, não. A gente vê que, de alguma maneira, esta questão teve de ser colocada na mídia, no cinema, na música. A arte é obviamente um grande fator gerador de mudanças sociais, mas vejo que na “instituição brasileira” é a mesma coisa da época da ditadura. Na gestão anterior, quando o PT estava no poder, ainda houve algum movimento, muito fraco ainda, de criar secretarias de apoio LGBT. Mas um país que não criminaliza a homofobia não dá amparo legal para quem sofre discriminação. Sem amparo do estado, não muda. Por isso que, ano após ano, quebramos o próprio recorde de violência contra LGBTs, como no ano passado.
Você é coautor do roteiro do videoclipe de 'Flutua', que aborda a questão desta violência. Como foi esta concepção, o casting de Jesuíta Barbosa e Maurício Destri?
Depois do Rock in Rio, precisava fazer um clipe, né? Convidei Ricardo Spencer, que, na época da MTV dirigiu muitos clipes e hoje trabalha na Globo, e é meu amigo, e, quando fui escrever o roteiro, vi dois vídeos no YouTube com interpretação de ‘Flutua’ em libras. Achei lindo. E pensei: por que não falar de dois jovens surdos que vivem esta história de amor em uma cidade grande? A gente até cogitou em não ter a menção à violência, ao ataque homofóbico, mas para mim era muito importante porque aquele momento incomoda tanto. Até eu dou uma pulada naquela parte porque causa um incômodo, mas acredito que arte é para colocar o dedo na ferida, para trazer questões à tona, para exorcizar, como fiz no “Macumba”, no “Coração”. E pensei em Jesuíta, que é para mim o olhar mais bonito do cinema. E em Maurício, de quem fiquei amigo no Rio de Janeiro. A Natura patrocinou e foi muito bonito de fazer. Enquanto a gente gravava, todo mundo chorava, foi muito poderoso. Quis lançá-lo no dia 25 de dezembro, no Natal, porque quer mensagem mais cristã do que esta: ‘ninguém vai poder nos querer dizer como amar’? Ame ao próximo.
E a repercussão, surpreendeu?
Demais. Já são dois milhões de visualizações no YouTube. Jean Wyllis e muita gente importante na discussão compartilhou, se emocionou…
E você se transformou em uma destas pessoas importantes, não?
É uma grande responsabilidade que tenho a honra de carregar. Algumas pessoas se aproximam me chamando de ícone da causa, mas acho demais...
Você não quer ser ícone?
Não é que não queira, talvez da música, mas da luta? Talvez o tempo responda isso.