Newark capturada nos livros de Roth é muito diferente da atualidade

O estopim dessas mudanças foram as revoltas de 1967

© Reuters

Cultura PHILIP-ROTH 26/05/18 POR Folhapress

"Ele deixou essa cidade, mas ela nunca saiu de dentro dele. É um lugar cheio de falhas, mas que ele amava do jeito que amamos aqueles parentes com que brigamos."

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Num dia quente desta primavera americana, o advogado Manny Antunes andava pelas ruas de Newark tentando explicar o charme rude do lugar onde Philip Roth nasceu e construiu os pilares de seus romances monumentais.

O autor de "O Complexo de Portnoy" e "Pastoral Americana", morto quatro dias atrás, descreveu em seus livros uma cidade onde judeus como ele se dividiam entre os trabalhadores e donos de pequenos negócios que se amontoavam nos arredores do parque Weequahic, no bairro mais ao sul, e empresários e médicos com casas grandes bem no centro.

Seu subúrbio quase plácido dormia à sombra dos arranha-céus de Manhattan brilhando como uma miragem do outro lado da "grande barreira que era o rio Hudson". Newark, nas memórias pedregosas e desencantadas de Philip Roth, era um lugar de gente de bem à beira do abismo, onde atritos irrefreáveis abortavam o sonho americano no embrião.

Não poderia ser mais nítido o contraste. O mesmo trem da infância do escritor, que sai do coração de Nova York e desemboca na biblioteca onde ele se refugiava para imaginar seus enredos, desliza entre vagões e locomotivas em decomposição e galpões oxidados, resquícios de uma era industrial há muito esquecida.

Mas fãs mais ardorosos do autor, como Antunes, veem mais que um ferro-velho. "Ele alçou nossa cidade ao nível do que James Joyce fez com Dublin ou Franz Kafka fez com Praga", ele diz. "Newark é outro de seus personagens."

E tal qual uma coisa imaginada, a maior cidade de Nova Jersey permaneceu congelada nos livros de Roth, muito distante daquilo em que se transformou. Nas últimas décadas, talvez tentando preservar em âmbar aquela Newark de sua juventude, o escritor tomou distância e foi viver entre Manhattan e um povoado rural.

Foi quando sentiu que já estava perto do fim da vida que ele começou a ensaiar uma espécie de retorno às origens. Rosemary Steinbaum, da Biblioteca Pública de Newark, não esquece o dia em que o autor perguntou se o lugar onde ele havia escrito livros como "Adeus, Columbus" e "Nêmesis" teria interesse em abrigar seu acervo de manuscritos e livros quando ele morresse.

"Fui até seu apartamento, e ele, sentado na sua poltrona Eames, fuçava em fotografias e documentos", conta. "Os retratos dele e de toda sua família contavam também a história de Newark. Anotava tudo que ele falava o mais rápido possível, mas depois ele reescreveu tudo que eu anotei. Era um administrador muito cuidadoso da própria língua."

Mas, enquanto Roth teve total domínio sobre seus livros e todos os detalhes da reforma do espaço onde os 4.000 volumes de sua biblioteca pessoal ficarão ao alcance do público, sua cidade do lado de fora do prédio já não é mais o que era.

O estopim dessas mudanças foram as revoltas de 1967. No auge do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, um caso de violência policial contra um taxista negro provocou um levante popular que deixou um saldo de dezenas de mortos, destruiu o bairro judeu e provocou o êxodo da classe média branca.

Newark, desde esse episódio traumático também retratado pelo escritor em "Pastoral Americana", virou uma cidade de maioria negra e de imigrantes que muitas vezes nem sabem quem foi Roth.

"Não conheço os livros dele, mas vi alguma coisa nas notícias", dizia Tonya Smith, uma mulher negra que tirava selfies com a estátua de Abraham Lincoln diante do tribunal da cidade, cenário de uma passagem de "Casei com um Comunista". "Quando era pequena, brincava de amarelinha aqui."

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No parque Washington, um gramado em frente à biblioteca onde o personagem principal de "Adeus, Columbus" gostava de se sentar para observar o trânsito, moradores de rua tiravam uma soneca, e a única pessoa acordada, uma garçonete, disse que nunca ouviu falar sobre o escritor.

Um raro vestígio daquela Newark de Roth, no entanto, sobrevive no Hobby's, o último restaurante judaico do centro, a poucas quadras dali.

No horário do almoço, policiais devoram sanduíches de pastrami e uns homens mais velhos resmungam sobre um prédio de 17 andares que estão construindo à beira do rio, tapando a vista de Manhattan.

"Esta é uma cidade diferente agora. Os judeus se mudaram. Queriam um gramado para os filhos brincarem, e as sinagogas foram junto", diz Mark Brummer, um dos donos do bar. "Mas meu pai nunca abandonou Newark. Um dia, Philip Roth deu as caras e surpreendeu todo mundo aqui."

Brummer até reconheceu o rosto famoso do autor, mas conta que nunca leu um livro.

Mesmo na escola onde Roth estudou quando adolescente, pano de fundo de uma série de passagens em "O Complexo de Portnoy" e "Complô Contra a América", o escritor também virou lembrança desbotada.

"Ele era um aluno notável", dizia Myra Lawson, responsável por um programa de bolsas de estudo do colégio, abrindo o álbum do ano em que Roth se formou na página com um retrato do jovem escritor.

"Não sei muito sobre o senhor Roth a não ser o fato de ele gostar muito de livros."

Os romances que ele escreveu, no entanto, não são assunto das aulas de literatura do colégio. Roth, pouco antes de morrer, até mandou doar algumas cópias deles para que formassem um clube do livro.

Vizinho da casa onde o autor viveu na infância, que nos últimos dias se tornou destino de peregrinação de fãs e jornalistas, Mostafa Mohamed não entendia toda a comoção.

"Só sei que ele era um autor famoso com muitos seguidores", disse o imigrante egípcio. "Todo mundo vem tirar fotos." Com informações da Folhapress.

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