Em filme de Aïnouz, Fernanda Montenegro volta às origens no RJ

Caracterizada como as aposentadas de classe média do Pedregulho, conjunto residencial de curvas modernistas em São Cristóvão, a atriz vive Eurídice Gusmão

© AgNews / Daniel Delmiro (Foto de arquivo)

Cultura Zona norte 17/06/18 POR Folhapress

O cenário é a zona norte do Rio com todos os seus signos. Em meio ao vaivém de moradores que fumam na varanda e ao grito dos garotos que jogam futebol lá embaixo, desponta o rosto de Fernanda Montenegro, rebenta da região -uma "filha de área operária", como define a carioca do bairro de Campinho.

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Caracterizada como as aposentadas de classe média do Pedregulho, conjunto residencial de curvas modernistas em São Cristóvão, a atriz vive Eurídice Gusmão, protagonista de "A Vida Invisível", novo filme de Karim Aïnouz. O lugar não é estranho a Fernanda, que rodou nos pilotis daquele prédio trechos de "Central do Brasil", 20 anos atrás.

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Em cena, sua personagem está com os filhos no apartamento, revirando o espólio do marido, morto há pouco. Acha cartas da irmã com quem perdeu contato, escondidas num cofre há mais de 60 anos. A viúva gagueja, chorosa, ao descobrir que ele as manteve em segredo. "Seu pai era um monstro!", e muda o tom da voz. "Destrói tudo dele, não quero saber de nada dele."

A sequência, diz Karim, é o "disparador narrativo" da trama, inspirada no livro "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Martha Batalha. Dali, a personagem rememora o passado com Guida, irmã expulsa de casa após engravidar.

Já é fim da tarde, os atores estão repetindo as falas desde o começo da manhã. "Quando bate a exaustão, aí é que a cena acontece", cochicha Fernanda para Cristina Pereira, que faz sua filha. O diretor acompanha pelo vídeo, fazendo sinais com as mãos como se regesse uma orquestra.

"O filme fala da luta para existir, mas sem ser panfletário ou demagógico", afirma a atriz à Folha. Sua personagem viveu uma vida invisível numa "família com estrutura de cima para baixo, com os códigos muito estratificados".

Fernanda evita chamar o longa de feminista. "O que se pretende hoje não nasceu hoje", diz, emendando uma parábola sobre a Madame de Staël, autora engajada que enfurecia Napoleão Bonaparte.

"Me espanta que toda essa grita em Hollywood não tenha acontecido antes", afirma a atriz sobre os movimentos MeToo e o Time's Up. "Reclamaram tarde, talvez porque antes tenham aceitado, porque tinham necessidade. Às vezes a necessidade é um prato de comida, compreende?".

A atriz também não preleciona sobre o que seria uma postura ideal para uma mulher num casamento. "Não vou jogar ovo podre em quem não quiser se afirmar. Só posso lamentar, mas às vezes pode ser na submissão que algumas mulheres estejam felizes."

O romance de Batalha, crônica sobre a condição feminina na era pré-revolução sexual, gerou frisson no exterior antes que uma editora brasileira se interessasse por ele.

Caiu nas mãos de Aïnouz por sugestão do produtor Rodrigo Teixeira, versado na adaptação de obras literárias para o cinema -ele é um dos coprodutores de "Me Chame pelo Seu Nome", que ganhou o Oscar de roteiro adaptado.

Já o diretor de "Madame Satã" e "Praia do Futuro" é prolífico em filmes protagonizados por mulheres ("O Céu de Suely" e "O Abismo Prateado").

Nina Kopko, diretora-assistente do longa, tinha lido o manuscrito enviado a Teixeira e se interessado pela "história dessa mulher que não pôde ser sujeito de si própria". "Há vários filmes sobre mulheres que fugiram à regra, mas sobre a grande maioria nós não temos o relato", diz ela. O produtor afirma que "uma coincidência triste botou Karim no projeto". A mãe do diretor morrera naquela semana. "Ela era muito parecida com as mulheres do livro", diz o cineasta. "Eu queria contar a história da geração dela, sobre a qual não sabemos nada. Como era a primeira vez de uma mulher nos anos 1950?".

Essas questões servirão para tecer uma "crítica à família tradicional", segundo o diretor. Tudo sob a forma de um melodrama irônico, "para escancarar a artificialidade daquelas situações todas." Fernanda é cautelosa ao falar sobre possíveis ressonâncias políticas da obra. "Até porque, politicamente, o momento é de incógnita", afirma. Com informações da Folhapress. 

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