© Câmara de Cultura/Elisa Mendes
As cortinas fechadas abafam e escurecem os cômodos da casa, já sufocada pelo verão no condado de Osage, um fim de mundo ao norte do estado de Oklahoma, Meio-Oeste americano.
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É um ambiente asfixiante que eleva sua clausura à medida que aumentam os conflitos da família Weston. Todos se alfinetam, trocam insultos e expelem remorsos. Mas este "é um belo dia", diz a matriarca Violet. "Um belo dia para se dizer a verdade."
As revelações de "Agosto", espetáculo do americano Tracy Letts, vão se descortinando aos poucos. Trazem à tona mágoas, "um raio-X de uma família destruída, de uma falta de comunicação absoluta", diz o diretor André Paes Leme.
É ele quem encena a primeira montagem brasileira do texto, que estreia nesta quinta-feira (12) em São Paulo após uma temporada no Rio.
O dramaturgo coloca no espetáculo, vencedor do prêmio Pulitzer de melhor drama e do Tony de melhor texto em 2008, um pouco de suas próprias origens, em especial de sua Oklahoma natal.
Beverly Weston (aqui vivido por Isaac Bernat) foi um poeta de prestígio nos anos 1960 e hoje mergulha no alcoolismo. Divide a casa escura com a esposa, Violet (Guida Vianna), mulher de língua afiada e viciada em remédios, que ora luta contra um câncer de boca.
Ele contrata uma empregada indígena, Johnna (Julia Schaeffer), a quem Violet trata com desprezo e preconceito. Certo dia, Beverly desaparece -o que logo se revela um suicídio- e os Weston se veem forçados ao reencontro.
Das três filhas do casal, Barbara (Leticia Isnard) é quem tenta tomar as rédeas da situação, mas duela com o fracasso de seu próprio casamento e com os jogos da mãe, magoada pelo abandono da filha preferida mesmo depois da doença da matriarca.
Karen (Claudia Ventura) esboça um otimismo enquanto se ilude com mais um projeto de marido. Já Ivy (Marianna Mac Niven), a única que ainda permanece em Osage, decide anunciar seus planos de escapar para Nova York.
Letts, 53, é adepto de temas soturnos. Em "Killer Joe" (1993), tem como protagonista um detetive que também é assassino de aluguel. "Bug" (1996) é envolto em paranoias e conflitos sanguinolentos. Já "Man from Nebraska" (2003) traz um homem de meia-idade em crise com suas crenças.
Mas para "Agosto" partiu de seu próprio núcleo familiar. Violet espelha sua avó materna, que mergulhou no vício depois do suicídio do marido, quando Letts tinha dez anos.
Beverly, de certo modo, é um reflexo do dramaturgo, ele mesmo vítima do alcoolismo. Assim como no controle do vício, há na peça um peso forte para tomadas de controle, como quando Barbara, num rompante, decide confiscar os remédios da mãe e diz: "Agora quem manda aqui sou eu!".
Com a personagem Johnna, Letts transita por uma questão ainda doída na região do Meio-Oeste americano: a tomada da terra por brancos e o extermínio indígena.
"Eu sempre senti que era inerente à peça a ideia de que, talvez, nós tenhamos semeado a nossa própria destruição com esse genocídio", disse o autor à revista "Slant" em 2013.
É o maior sucesso de palco de Letts, que também é ator (está em filmes como "The Post" e "Lady Bird: A Hora de Voar"). Depois da aclamada temporada na Broadway, em 2008, "Agosto" ganhou uma adaptação ao cinema, "Álbum de Família" (2013), com Meryl Streep e Julia Roberts.
A montagem brasileira segue a ambientação americana, mas enxuga referências muito locais, concentrando-se no drama da família.
Em sua adaptação, Paes Leme reforçou um encadeamento de cenas. O texto de Letts foi criado para um cenário realista, uma casa com os cômodos abertos para a plateia, que assiste ao que acontece, simultaneamente, em cada espaço.
Aqui, por falta de verba e um palco diminuto (a peça estreou no Oi Futuro, no Rio), decidiu-se por uma cenografia de poucos elementos, apenas alguns tapetes e umas cadeiras.
Os cômodos são representados pela movimentação dos personagens, que por vezes se posicionam em diagonais opostas, cada qual representando um cômodo.
Os diálogos são alternados, entrecortados, algo já existente no original de Letts, mas reforçado na adaptação de Paes Leme. Ora falam os familiares de uma sala, ora os de um quarto, como se conversas distintas fossem costuradas.
"Foi da dificuldade que nasceu esse recurso, mas ele dá muito mais agilidade às cenas e fica bem viva a questão dos conflitos", afirma o encenador.
O cenário reforça o ambiente sufocante da casa, na qual não se sabe se é dia ou noite. Todo preto, tem ao fundo uma estrutura transparente que deixa passar um fio de luz.
Mas a asfixia também dá lugar à comicidade, muitas vezes na ironia amarga de Violet. "A força cômica do texto é imensa. A crítica excessiva dá essa abertura para riso", afirma Paes Leme, que há mais de dez anos se divide entre trabalhos no Brasil e em Portugal.
"Há muito tempo que eu não tinha a oportunidade de trabalhar com um texto tão elaborado, tão fechadinho. Hoje em dia a dramaturgia é tão desconstruída, tão casual. A gente tem se esquecido de como são esses textos [bem estruturados], que também são um prato cheio para o ator."
Tanto que a montagem levou três prêmios APTR, para as atuações de Guida, Leticia e Claudio Mendes, e um Cesgranrio, também para Guida.
Assim como o desapego ao texto dramático, produções de elencos maiores (aqui são 11 atores em cena) têm se tornado algo cada vez menos comum no Brasil, diz o diretor.
Numa sessão no Rio, lembra ele, "uma pessoa na plateia até se surpreendeu e disse, em determinado momento: 'Meu deus, mais um ator'".
AGOSTO
ONDE: Sesc Consolação - Teatro Anchieta, r. Doutor Vila Nova, 245
QUANDO: Qui. a sáb.: 21h, dom.: 18h. Até 5/8
QUANTO: Ingr.: R$ 12 a R$ 40. 16 anos. Com informações da Folhapress.