Rodado por 10 anos, 'Alguma Coisa Assim' narra mudanças na rua Augusta

Sumiram os letreiros coloridos, ecos de uma boemia ainda mais antiga que coloria as fachadas na década passada

© Marcos Santos/USP

Cultura longa 22/07/18 POR Folhapress

Parado no meio da rua Augusta, ilhado por carros que zunem dos dois lados da via, o cineasta Esmir Filho aponta para o quarteirão à frente. "Não era ali que começavam os néons?", pergunta à também diretora Mariana Bastos. Ela tem dúvidas.

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Sumiram os letreiros coloridos, ecos de uma boemia ainda mais antiga que coloria as fachadas na década passada. Os pés-sujos e suas mesas de plástico deram lugar a bares de cerveja artesanal. Sumiu também o bate-bolsa nas calçadas do Baixo Augusta, hoje mais caro e bem-comportado.

Filmado ao longo de dez anos, o drama "Alguma Coisa Assim", que estreia na próxima quinta-feira (26), é a crônica de uma noite que passou por mutações. O longa de Esmir e Mariana serve também como cápsula do tempo para uma geração, hoje passada da casa dos 30, que se deixou perder nas pulsações daquela via paulistana.

"A rua Augusta aparecia já na página um do roteiro. Sempre quis falar daqui", conta o diretor, em frente às portas de vidro do Espaço Itaú, cinema que há 25 anos funciona como ponto zero daquele universo. Refúgio de cinéfilos e fãs de filme de arte, o lugar já se chamou Espaço Nacional e Espaço Unibanco e já teve o seu interior reformado.

Um dia, apoiado nas pesadas mesas de madeira ali dentro, Esmir recebeu o bilhete de um menino que só sorriu e depois sumiu. "Dizia que 'Alguma Coisa Assim' tinha mudado a vida dele", afirma o diretor paulistano de 35 anos.

"Alguma Coisa Assim", no caso, era também o nome do curta lançado pelo cineasta em 2006 e premiado no Festival de Cannes daquele mesmo ano. "Eu tinha 23 anos, queria falar sobre o que estava sentindo quanto a sexualidade e minhas descobertas", diz Esmir. A Augusta era cenário natural.

Por 15 minutos, o curta acompanha Mari (Caroline Abras) e Caio (André Antunes), amigos que se aventuram pela rua ainda saturada de néon. Rodam por botecos, entram numa balada. O garoto dá ali o seu primeiro beijo em um outro homem. A garota parece ficar enciumada.

No então novo caldeirão urbano, acolhendo universitários que bebiam entre bordéis, a via fazia as vezes de metáfora do desabrochar dos amigos.

Os dois diretores e os dois atores criaram o esqueleto da história entrando a esmo nas casas noturnas. "A gente incorporava o que cada noite trazia", diz Mariana, 36, atravessando um cruzamento. Perto dali, uma pizzaria continua servindo pedaços pré-assados de queimar o céu da boca até as 4h, para os famintos da madrugada.

Um casal de homens cruza de mãos dadas e uma garota conversa com outra sobre os tempos em que "trampava de DJ" quando os cineastas contam que, sete anos após lançarem o curta, acabaram se reencontrando com os atores, de novo numa mesa de bar.

Era 2013 já, e a rua tinha se transformado. A Lei Cidade Limpa, que passou a vigorar em 2007, havia varrido os grandes luminosos dos estabelecimentos, começaram a pipocar prédios de escritórios onde antes havia inferninhos, e o termo "Baixo Augusta" já não precisava mais vir acompanhado de uma explicação.

"Pensamos em fazer um curta sequência, contando o que teria ocorrido com os personagens e a rua", diz Esmir, quase inaudível com as freadas de ônibus. A seu lado há um Burger King, franquia que chegou ao país em 2004 e que, na época do primeiro curta, era ainda restrita aos shoppings.

De repente, "tinha muito tapume", diz o diretor. "Aquela Augusta tinha ficado em algum lugar, assim como a adolescência dos personagens."

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Desde 2006, o valor do metro quadrado nessa região da metrópole saltou de R$ 3.300 para R$ 10 mil no ano passado, segundo dados da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio, acompanhando o boom de lançamento de 52 prédios nesse período no Baixo Augusta e adjacências.

Passando em frente a uma rua de "food trucks" que defuma os transeuntes e onde um garoto olha para o celular, como se a aguardar um encontro, os cineastas dizem que não demorou para transformarem o que seria esse segundo curta em um longa.

Costuraram o material rodado em 2006 às imagens de 2013 e outras que filmaram em Berlim há dois anos. "Alguma Coisa Assim", o novo longa, seria um "Boyhood" brasileiro -assim como o filme do americano Richard Linklater, mostra o desenvolvimento de personagens que amadurecem junto dos intérpretes.

Nesse período, a atriz Caroline Abras empilhou filmes, séries e novelas no currículo. Seu colega, André Antunes, virou psicólogo, mas voltou ao velho papel. Na trama do novo filme, seus personagens se distanciaram no correr dos anos, e os encontros servem para botar a união à prova.

"Não rotulamos a relação deles. Eles são fluidos", afirma Mariana, descendo ainda mais a Augusta, cruzando kebaberias e lanchonetes de coxinha vegana que seriam estranhas para os frequentadores daquela rua em 2006.

A Galeria Ouro Fino, outrora reunião de sebos e ateliês de costura que conviviam com toda a fauna da noite, hoje vende brinquedos japoneses. Uma galeria bem mais nova abriga loja batizada com o nome da própria Augusta, sinal de que a rua virou marca.

No bar Ibotirama, um ex-boteco que anuncia ter sido fundado em 2004, Mariana nota que as mesas mudaram. "Eram de plástico. Hoje são de madeira." Ao lado, há uma tal Beer House, de nome e interior de luz indireta que remetem mais a bares da Vila Olímpia. Ali dentro, toca "Hotel California" e se serve cerveja artesanal em torneiras.

Um quarteirão para baixo, Esmir e Mariana tentam rememorar qual era o ponto repleto de néon que encantaram a eles e a Caio e Mari. Não conseguem precisar exatamente. Os luminosos, que formavam corações, silhuetas femininas e taças de champanhe, chamavam para boates de strip com nomes um tanto lascivos como Las Jegas, Emmanoele, Vira Virou, Babilônia, Night House e Casarão.

Em 2002, esses inferninhos eram cenário da perdição de "Bellini e a Esfinge", filme de Roberto Santucci, famoso hoje por comédias popularescas. Da Balneário, uma das poucas boates que sobraram, sobe um cheiro de eucalipto do porão. A placa anuncia que a entrada de R$ 20 dá direito a duas cervejas e amendoim.

Ali espremido ficava o Vegas, fechado em 2012, balada que foi pioneira em trazer novos públicos àquela região. "Alguma Coisa Assim" tem cenas rodadas na entrada recoberta por capitonê dourado.

A casa sumiu, como desapareceu o "trottoir" de garotas na calçada. "E o Netão ficava para lá", diz Esmir, citando que a casa noturna que deu lugar a um prédio de mais de 20 andares. "Muitos chamam de demolição, mas para outros pode ser construção, não é?"

Uma mulher com roupa de academia leva na coleira dois pequineses impecavelmente lavados. Cruza a vitrine do sex shop que vende sapato de salto de oncinha e cueca micro. Com informações da Folhapress.

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