© Foto: Arquivo do Estado
A convite da Coroa Portuguesa, o francês Jean-Baptiste Debret pintou "Aplicação do Castigo do Açoite" no século 19, obra que representa sessões de tortura aplicadas aos negros durante a escravidão no Brasil. Amarrado a um tronco, um homem nu da cintura para baixo. Ao lado esquerdo, o torturador e a chibata.No dia 4 de abril deste ano, essa mesma imagem provocou uma crise no Arquivo Público do Estado de São Paulo, ligado ao governo paulista.
PUB
"Aplicação do Castigo do Açoite", Jean-Baptiste Debret
O diretor do Centro de Acervo Permanente do Arquivo, Marcelo Quintanilha, fixou uma cópia da tela na porta do setor, sem aviso à equipe de comunicação, como é praxe, nem relação com eventual atividade em referência ao período colonial do Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, em 1888.
O ato foi entendido como discriminação racista por alguns funcionários, abrindo uma série de discussões internas que resultaram em um pedido de desculpas aos servidores. Informado do caso, o departamento de comunicação encaminhou um email para os demais diretores.
Uma das mensagens pedia providências e foi encaminhada pelo chefe de um departamento ao coordenador do Arquivo Público, Fernando Padula, ex-chefe de gabinete da Secretaria da Educação na gestão Geraldo Alckmin (PSDB) e alvo de investigação na fraude da merenda. A direção do Departamento de Preservação e Difusão do órgão informou, na ocasião, que a imagem havia sido retirada, sem explicar por quê.
A mensagem enviada a Padula alertava para a "gravidade" do ocorrido, dizia que a reprodução reforçava "estereótipos e preconceito" e pedia aos funcionários para "evitar que repercussões negativas sejam externalizadas através da imprensa ou das mídias sociais". Em troca de emails, a direção lamentou esse episódio e afirmou que a atitude não refletia a posição da instituição. A reportagem pediu para entrevistar a direção do Arquivo Público e Quintanilha, mas nenhum pedido foi atendido.
Segundo a assessoria de imprensa do Arquivo, a colocação da tela foi uma falha, mas não um ato racista. Ela informou que, na ocasião, a direção redigiu email com pedido de desculpas e orientações que deveriam ser enviadas a todos os servidores. "O Arquivo Público do Estado de São Paulo repudia todo e qualquer ato discriminatório", afirma.
A assessoria do órgão disse que Quintanilha não teve nenhuma intenção de ofender e esteve em todos os setores que tinham pessoas negras pedindo desculpas a quem achasse que tinha ofendido. Ela afirmou também que ele é casado com uma mulher negra. A comunicação do Arquivo também afirma que consultou pessoas negras e não houve entendimento de racismo.
"O caso foi resolvido internamente." O órgão retomou a discussão sobre raça pouco depois, em uma atividade educativa interna, em razão dos 130 anos na abolição da escravatura no Brasil. Para Lia Vainer Schucman, doutora em psicologia social pela USP, o racismo no Brasil é percebido como mal entendido. "Na maioria dos casos, a pessoa não tinha a intenção de provocar aquilo. Isso não tira a responsabilidade dela, mas mostra que no nosso país aprendemos a ser racistas. É um problema sistêmico."
Sobre o caso, afirmou que não é possível fazer julgamentos sem saber o contexto. "Mas é estranho [o diretor] não fazer associação com racismo sendo que está nesse cargo." A exposição da gravura, diz o advogado Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), pode ser interpretada de muitas formas.Por exemplo, como ameaça (a alguém, a um grupo ou que a pessoa que colocou sofre) ou até uma reclamação por excesso de trabalho. De qualquer maneira, afirma, o caso deveria ser esclarecido.
"Temos um trauma nacional provocado pela escravidão. Esse silêncio do Brasil com a questão racial acarreta muitos dos problemas que o país vive. Quem tem a pele preta no Brasil tem menos direitos." Com informações da Folhapress.