Atores vão repetir falas de candidatos ao vivo durante debate na Globo

Performance idealizada pelo artista Nuno Ramos terá falas de políticos e bailarina rodopiando

© Lucas Ávila

Cultura Teatro 03/10/18 POR Folhapress

Nuno Ramos está em estado de emergência. A crise política e institucional dos últimos anos, as eleições presidenciais e o avanço da extrema direita no país fizeram soar os alarmes internos do artista visual e escritor de 58 anos. "Tenho a sensação de que podemos realmente perder o país; de que alguma coisa emparedou o sistema institucional", diz.

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É dessa paisagem turbulenta e abismal que Ramos extraiu a matéria-prima de seus novos trabalhos, os mais explicitamente políticos de três décadas de produção artística.

Para compor a série de performances teatrais "Aos Vivos", Ramos diz ter buscado se "apropriar, botar a mão nessa loucura que estamos vivendo, essa espécie de desinibição do pior, que veio com força sem limite".

Tendo como mote os debates televisivos dos candidatos à Presidência, o artista explora e refina, nos novos trabalhos, um conceito usado neste ano em "A Gente se Vê por Aqui", em que dois atores recebiam e reproduziam simultaneamente a grade de um dia inteiro de programação da TV Globo.

Agora, os candidatos serão representados por atores, que receberão ao vivo o áudio do debate e o transmitirão, em tempo real, à plateia. Assim, as performances terão a duração exata das contendas políticas. A primeira ocorrerá nesta quinta-feira (4), às 22h, no Galpão do Folias, em São Paulo, durante o debate da Globo. As demais, num eventual segundo turno das eleições.

Em cada uma das três obras da nova série, Ramos introduz um elemento exógeno que "dialoga" com o discurso dos candidatos: uma dervixe, figura da vertente sufi do islamismo, trechos da peça "Antígona", de Sófocles, e falas do clássico "Terra em Transe", de Glauber Rocha.

O uso de métodos mais teatrais -outra novidade da fase atual do artista- se dá de maneira crítica, por exemplo, por meio do questionamento da ideia de representação. "O real está tão forte neste momento, que não basta representá-lo, é necessário pegá-lo enquanto as coisas estão acontecendo", afirma. Daí a proposta de captar a palavra enquanto ela ainda paira no ar, viva.

Tal expediente, como seria de imaginar, impõe não poucos desafios aos atores. "É um negócio de louco e ao mesmo tempo um exercício maravilhoso, pois eu não tenho tempo de ter uma opinião sobre o 'texto'", diz o ator Celso Frateschi, que participa da performance.

"Quando o Nuno nos coloca para reproduzir as palavras de um debate, isso promove um distanciamento que abre a possibilidade de uma visão crítica sobre ele. O conteúdo entra e sai com um mínimo de filtro -o meu corpo e minha voz, basicamente-, mas que já é suficiente para relativizar a coisa."

Os atores foram instruídos a evitar o cômico e o grotesco na representação dos candidatos. Em um ensaio da primeira performance, Ramos pediu a eles que tentassem "pegar o aroma, talvez o ritmo, a densidade da fala dos políticos, o que é diferente da cópia das pequenas partes que, exacerbadas, criam a sensação de caricatura".

Na primeira ação da série, os atores-candidatos ficarão dispostos em círculo. No meio deles, uma bailarina representando uma dervixe ficará girando em torno de seu eixo durante todo o debate. "Um círculo com um movimento circular dentro dele", resume o artista. "Pensei num pássaro preso por paredes de vidro, na oposição ocidente-oriente." Músicos tocarão ao vivo melodias sacras sufis.

A segunda performance ocorrerá na Casa do Povo, durante o penúltimo debate do segundo turno. Nela, os intérpretes receberão o áudio do debate em um ouvido, e, em determinados momentos, trechos de "Antígona" no outro.

Por fim, no último debate da eleição, no dia 26, a performance ocorrerá no Instituto Moreira Salles de São Paulo. O ato será pontuado por falas de dois personagens do clássico "Terra Em Transe" -Paulo Martins, jornalista e poeta idealista, e Porfírio Diaz, um político conservador.

"No filme temos a autoindulgência do Paulo, que faz algo como um acerto de contas da esquerda, mas também a sua agressividade. Acho que essas duas tonalidades vão estar presentes no debate. E o Diaz é o Bolsonaro. No final do filme ele brada: pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização."

A interação das falas dos personagens e dos políticos produz uma espécie de curto-circuito, diz a atriz Grace Passô, que integra a performance. "A poética dos personagens do Glauber acaba servindo de comentário ao discurso dos candidatos."

Ramos acredita que em momentos de crise, como o atual, a arte "precisa dar uma pirada, no sentido de se radicalizar, pois as energias estão todas mais explícitas e acessíveis do que em períodos de maior tranquilidade". Tal radicalização já foi responsável, no passado, por alguns dos trabalhos artísticos mais potentes já produzidos no país.

Ele dá como exemplo a arte da época do AI-5, baixado em 1968, que deu poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente quem fosse considerado inimigo do regime militar.

"O cinema marginal produziu coisas impressionantes nessa época. O Hélio Oiticica está acontecendo ali, a Lygia Clark também, o Tunga está vindo, tem ainda o Cildo Meireles. Na canção você tem uma sequência incrível: o 'Transa', do Caetano, 'Expresso 2222', do Gil, o álbum branco do João Gilberto, o 'Estudando o Samba', do Tom Zé, os Novos Baianos. Até o Raul Seixas foi bom nessa época", brinca.

Seria um erro, entretanto, estabelecer uma relação de causa e efeito entre tais momentos históricos e a qualidade das obras, adverte o artista. "Mas eu noto que em regimes de explicitação, como o que vivenciamos, os artistas se tornam mais agudos, querendo trabalhar e se fazer no outro, o que pode ser um catalisador de grandes obras."

O risco, diz Ramos, seria regredir a uma "estupidez das esquerdas do passado de achar que a arte deve reagir dessa ou daquela maneira ao contexto, pois pressupõe que alguém saiba como essa reação deva ser, algo que só a própria arte pode responder".

Segundo ele, muitas vezes a arte explicitamente política não tem nada de política, atuando como mera transmissora de valores. "Não existe um caminho certo para se produzir arte num tempo como o nosso", diz. "O demônio da arte é o demônio da autonomia."

O próprio artista é exemplo disso. Ao mesmo tempo em que concebe e executa as novas performances políticas, Nuno Ramos conclui uma série de pinturas abstratas de grandes dimensões que passam distantes do som e da fúria que grassam no país. Com informações da Folhapress.

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