© Divulgação / Cauê Porto
Antes de posar para as fotos desta entrevista, Nicole Puzzi desabotoa a camisa e abre o decote, mostrando um sutiã verde-limão, quase fosforescente. Há outro, vermelho, guardado na mochila dourada, junto a um vestido de mangas bufantes e a uma camisola cor-de-rosa. "Tá vendo só? Uma atriz de pornochanchada nunca sai despreparada."
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Ela enche a boca para dizer que atuou nesse tipo de produção, sim, sem a vergonha que acomete colegas. E levanta a bandeira daqueles filmes safados e baratos que lotaram os cinemas de rua entre os anos 1970 e 1980. "Algumas atrizes ficaram amarguradas, mas eu tenho a cabeça boa."
Aos 60, Puzzi é alvo de mostra com 10 de suas obras na Cinemateca, que começa nesta quinta-feira, e incrementa seu status cult como apresentadora do Pornolândia, programa de entrevistas sobre sexo no Canal Brasil, e como parte do elenco da peça "Transex", do grupo paulistano Os Satyros.
Partiu de Ivam Cabral, um dos diretores da companhia teatral, a ideia para o festival de filmes. "Foi uma dificuldade conseguir cópias", conta. "Algumas não estão estavam nem digitalizadas". Foi ele também quem convidou a atriz a dar um curso sobre aquele gênero do cinema, neste mês, na SP Escola de Teatro."Participei das pornochanchadas porque quis. Se não fosse por nós, o Brasil estaria mais atrasado em relação à liberdade sexual. Sou feliz por ter sido fora da lei", diz a paranaense da cidade de Floraí. Criança, punha hábito de freira enquanto as irmãs se fantasiavam de noiva. "Porque eu nunca quis casamento. E achava que a forma de me livrar era daquele jeito."
Aos 17, já em São Paulo, topou com David Cardoso numa padaria próxima à TV Tupi. O ator lhe mostrou o roteiro de "Possuídas pelo Pecado", que seria filmado em 1976. "Gostei. Eu queria afrontar." No filme de Jean Garrett, que começa com uma cena de bacanal na sala de estar de um ricaço, Puzzi faz a filha da governanta carola. Ela quase não tira a roupa na trama, embora sua personagem peça "um nu, um nu bem bacana" ao pintor que orbita por ali e se jogue na cama do motorista, interpretado por Cardoso.
O pai da atriz só soube do trabalho da filha quando ela havia emendado a quarta pornochanchada. Um dia, a interpelou: "Quer dizer que você está fazendo esses filmes de ficar pelada?". Ela não mentiu, ele também não impediu. "Só disse que eu ia quebrar a cara."
Puzzi ascendeu ao primeiro escalão das musas da rua do Triunfo, a via paulistana que sediou a Boca do Lixo, maior polo de produção cinematográfica da época. Fez burguesas virginais, prostitutas aprisionadas e universitárias incautas, em geral valendo-se de ares de ninfeta, encalacrados no imaginário de um brasileiro que vivia sob repressão puritana do regime militar.
"A pornochanchada enfrentou a ditadura com o deboche", crê a atriz. Segundo ela, diretores como Ody Fraga, de "Reformatório das Depravadas", embutiam ali suas farpas contra os militares. "Minha personagem morre enforcada como o Vladimir Herzog." Em "Escola Penal de Meninas Violentadas", as mulheres são torturadas com os requintes que se via nos porões do DOI-Codi -só que nuas, é claro. "Porque uma parte era para ganhar dinheiro, e a outra era para mostrar a realidade. Muita gente entendeu."
Embora as telas exibissem mulheres objetificadas, diz, imperava alguma igualdade nos bastidores. "Nós podíamos decidir como seríamos filmadas. Às vezes, o diretor ganhava no papo, e a cena saía mostrando um pouco mais. Mas ninguém ali tinha pudor." Dentre os filmes da mostra, "Ariella", de John Herbert, é o mais emblemático da atriz. Lançado em 1980, costura uma história de intriga familiar com direito a Herson Capri de microsshorts e transa na mesa de sinuca entre Puzzi e Christiane Torloni -fruto do roteiro de Cassandra Rios, ícone da literatura lésbica.
A imagem de sex symbol atraiu assédio. "Os homens achavam que a gente estava ali pra isso. Vinham sempre bêbados falar comigo. Bebiam e brochavam". Os papéis também geraram pedidos de casamento e propostas de programas. "Nunca aceitei", diz. Certa noite, um admirador, já bem bêbado, lhe pediu carona e, na viagem, botou o pênis para fora. "Abri a porta do Fusca e empurrei ele para fora."
Em meados dos anos 1980, a pornochanchada virou pornô. "O público era outro, e sexo explícito não tinha nada a ver comigo", conta Puzzi, que deixou a Boca do Lixo, mas continuou atuando para Carlos Reichenbach e Ivan Cardoso, o pai do chamado "terrir". A pecha de musa daquele tipo de filmes pesou, e os papéis foram todos minguando. Deprimida, a paranaense se mandou para a Europa.
Fã de Nietzsche, sobre quem ouviu falar pela primeira vez nos botecos da rua do Triunfo, peregrinou à cidade alemã de Weimar, onde ele morreu, e dali partiu num tour por campos de concentração. "Eu queria sangrar. E ali, vi que meu sofrimento era egoísta. Voltei ao Brasil mais tolerante."
Acolhida pelos Satyros, com quem tem outra montagem teatral emendada, Puzzi cogita dirigir pela primeira vez. Será um curta, inspirado no mito grego da caçadora Atalanta. Ela também dá palpites nos novos projetos em cinema de Ivam Cabral. "Pega esses pés de boi da pornochanchada, chama umas meninas e vamo que vamo, cara." 5 destaques da mostra de filmes:
'Eu'Lançado em 1986, o longa de Walter Hugo Khoury tem Tarcísio Meira no papel de um homem que deseja todas as mulheres que o cercam numa casa de praia 'As Sete Vampiras'Ivan Cardoso mescla humor escrachado e erotismo nessa história sobre plantas carnívoras e dançarinas vampirescas lançada em 1986 'Ariella'No papel-título da obra que chegou aos cinemas em 1980, a atriz vive uma garota virgem que vê sua sexualidade aflorar ao mesmo tempo em que descobre que não é filha de verdade de seus pais 'Possuídas pelo Pecado' Em seu primeiro longa, de 1976,Puzzi interpreta a filha da governanta de um sujeito rico e se envolve com o motorista da casa 'Damas do Prazer'O romance "Nana", de Émile Zola, inspira o roteiro de Ody Fraga sobre um grupo de prostitutas, novatas e veteranas, que batem perna na região do baixo meretrício da Boca do Lixo, no centro de São Paulo. Dirigido por Antônio Meliande e lançado em 1978 Eu, Nicole Puzzi, Possuída pelo Prazer Onde: Cinemateca -Lgo. Senador Raul Cardoso, 207, tel. (11) 3512-6111. Quando: Qui. (4) a dom. (14). Quanto: Grátis. 18 anos. Mais informações no site https://www.mostraeunicolepuzzi.com.br/ Com informações da Folhapress.