Inéditos de Gabriel García Márquez mostram escritor em formação

Foram revelados pela primeira vez ao público quatro textos e fragmentos inéditos que Gabo escreveu entre 1948 e 1952

© REUTERS/Tomas Bravo

Cultura Gabo 16/10/18 POR SYLVIA COLOMBO, para Folhapress

SYLVIA COLOMBO - "Meu pai gostava de achar que o que fazia tinha algo de magia. E, como mágico, tinha obsessão em não deixar traços de como inventava seus truques. É por isso que destruiu ou refez várias versões do que depois viriam a ser seus textos de ficção", conta à Folha de S.Paulo um dos filhos de Gabriel García Márquez (1927-2014), Gonzalo García Barcha, 54.

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"Quando eu e meu irmão, Rodrigo, éramos pequenos, essa era nossa principal tarefa quando estávamos perto do meu pai enquanto ele trabalhava. Ele nos dava manuscritos rabiscados ou papéis amarfanhados e mandava que picássemos e jogássemos no lixo", conta.

García Barcha causou furor no Festival Gabo, promovido pela Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano na semana passada, ao caminhar pelo evento exibindo um rosto que evoca uma verdadeira reencarnação do Nobel de Literatura colombiano quando tinha sua idade.

Porém, nem todos os "truques" de Gabo foram destruídos. Na verdade, em certos casos, o próprio escritor fez questão de manter e publicar textos com ideias, personagens e temas que se desenvolveriam depois em outras obras suas.

É o caso do romance curto "La Hojarasca", publicado em 1955, em que aparecem uma Macondo incipiente e alguns dos personagens que depois tomariam mais corpo em "Cem Anos de Solidão" (1967).

Agora, são revelados pela primeira vez ao público quatro textos e fragmentos inéditos que Gabo escreveu entre 1948 e 1952. São obras que ele não quis destruir, mas tampouco publicar, e que até então estavam com a família. Por ora, estão expostos na Biblioteca Luis Ángel Arango, de Bogotá, que também recebeu da família um acervo de 44 caixas que o escritor deixou claro que gostaria que fossem entregues à rede de bibliotecas colombiana.

Não fazem parte, assim, do acervo oficial de seus manuscritos de obras publicadas e de sua biblioteca, que foram entregues, também segundo a vontade do escritor, à Universidade do Texas, nos EUA.

"Esses documentos têm uma riqueza imensa, além de permitir que formemos um acervo Gabo aqui na Colômbia, mostram um escritor em formação. São seus primeiros anos, por isso há muita coisa escrita à mão. Suas condições eram precárias, ele ainda não tinha claro para onde iriam suas ideias, era muito jovem", diz Sergio Sarmiento, pesquisador da biblioteca Arango.

Os anos em que escreveu esses textos correspondem aos que Gabo havia retornado à costa colombiana.

Nascido em Aracataca, no interior da região costeira, Gabo tinha passado um tempo estudando em Bogotá. Porém, a explosão política e social causada pelo Bogotazo -revolta popular causada pelo assassinato do líder Jorge Eliécer Gaitán, em 1948- o levou a Cartagena, em busca de emprego.Trata-se de um período de grande violência na Colômbia, e isso passa a impactar Gabo, levando-o ainda mais pelo caminho do jornalismo, engajando-se nas tentativas de paz, e tornando o tema recorrente em sua literatura.

Mas esses primeiros tempos foram difíceis. Tudo o que ele tinha havia sido queimado na pensão em que vivia em Bogotá. Em Cartagena, dormiu em bancos de praça até acabar conseguindo emplacar matérias em jornais locais e conseguir alguma estabilidade.

São dessa época os inéditos que vêm à tona.O texto mais relevante é "Relato de las Barritas de Menta", escrito em Cartagena, em 1952, que narra o retorno de um viajante a um povoado que parece parado no tempo. No fundo, é Gabo voltando à Aracataca, mas já vendo nela, em suas ruas e moradores, as cores literárias com as quais a transformaria na fictícia Macondo.

"Olor Antiguo" conta a história de um homem que se dá conta, no aniversário de 50 anos de casamento, que na verdade contraiu bodas com a irmã gêmea da mulher que verdadeiramente amava.

O terceiro é "El Ahogado que nos Traía Caracoles", também escrito em Cartagena, em 1951, em que aparece uma mulher cujas características lembram muito Úrsula Iguarán, a matriarca de "Cem Anos de Solidão". No conto, há uma mulher sonâmbula que durante as noites é visitada em sonhos (ou não) por um advogado. O último texto é um fragmento intitulado "relato", que também descreve um povoado costeiro, e que traz elementos que também entrariam depois em outros contos.

A pergunta sobre porque esses textos sobreviveram, mas não foram publicados, fica no ar. Como tudo relacionado a Gabo, pode ser respondida com um pouco de mística e superstição.

O filho diz que o pai era obsessivo com a destruição de tudo que poderia revelar como ele "costurava uma história ou um personagem. Porém, se tinha alguma intuição de que ia lhe servir no futuro, ou que daria azar jogar fora, ele guardava. Era muito supersticioso."Se guardou por achar que trariam sorte no futuro, Gabo estava certo.

Leia abaixo um trecho de um dos inéditos.

História das Barrinhas de Menta

Por último cessou o sibilar dos freios. A roda repousou sobre o trilho e silêncio esmagador e empoeirado da aldeia penetrou o vagão. Era um silêncio igual à aldeia. Feito de seus mesmos e desolados ingredientes. De suas ruas retas, largas e vazias, de seus enormes pátios quadrados, frescos sob a penetrante umidade das bananeiras, e de suas velhas casas de madeira arruinadas sob o pó, com mobílias antigas e mulheres obscuras, sem idade nem pressentimentos, jazendo no torpor da sesta.

Não tinha mais de 20 anos esse silêncio, mas sua maturidade, sua devastadora experiência, lhe davam um aspecto secular e faziam com que parecesse um silêncio tão antigo quanto o reluzir da poeira ruas, ou como a claridade dos espelhos que haviam perdido a memória dos últimos rostos.

A sensação de morte estava em mim, não na solitária estação ou no apito do trem que voltava a se colocar em movimento, nem nos escassos habitantes sentados ou em pé por sob as árvores cinzentas. Talvez eu tivesse conhecido a todos eles, e agora me viam passar e me reconheciam, pensando "veja você, voltou o morto".

E de certa forma eles tinham razão, tudo aquilo havia sido assim desde o princípio. O escuro armazém dos italianos onde se vendiam botas de cano curto para as crianças e sardinhas para os adultos, e barras de menta para os pequenos e os grandes, e cujo interior cheirava a pão guardado e a petróleo cru.

De pé na estação, indeciso, eu via do outro lado da rua o armazém dos italianos, e o homem exatamente como estava vinte 20 anos antes, nem mesmo 20 vinte anos mais velho, recostado contra a armação da porta, vendo partir o trem. Aquilo era como voltar a ver as ilustrações de um livro conhecido na infância.

E então se atravessa a rua, sente-se o calor sob as solas, o ardor da poeira, e se pergunta ao homem...[Falta este fragmento]

"Que calor, não?", pergunto a ele, ainda o encarando. Agora o via de perto e apreciava o transcorrer do tempo em seu rosto. Eu sabia que esse era mesmo calor de sempre, o mesmo torpor da sesta. Nada havia mudado exceto a altura do italiano, que parecia mais baixo do que quando eu ia comprar barrinhas de menta.

"Como sempre", ele disse e lançou um último olhar ao trem. Logo se aprumou, voltou a me examinar com seus olhos redondos e pequenos, de um verde esmaecido, e me perguntou se eu queria me sentar. Respondi que não, que queria simplesmente fazer uma compra, uma barrinha de menta.

O homem não se comoveu. Parecia que precisava de dois ou três minutos para acabar de ouvir e de outros dois para começar a entender. Tirou do bolso de suas calças um lenço grande e sujo, enxugou o rosto, e sorriu, um sorriso que parecia ter algo de zombeteiro.

Eu repeti, para um calor assim nada como barras de menta. O homem moveu a cabeça, esticou-se na cadeira. Disse: "Isso é verdade, mas há mais de 20 anos não recebemos as barrinhas de menta".

Senti meus pés se derretiam nos sapatos; os últimos ruídos do trem cessaram e os cidadãos taciturnos que, da sombra das árvores, o assistiam partir começaram a se mover. O homem guardou o lenço e voltou a me olhar, como se esperasse que eu lhe fizesse um novo pedido. De repente, senti-me apertado em um círculo estreito. Uma volta iniciada no trem se havia prolongado pela margem do silêncio, pelas ruinosas casas de madeira, e então pela breve conversa com o italiano.

Ali terminava o círculo e devia estar de novo o trem, mas o trem havia partido e só regressaria dentro de duas horas. O calor, o reluzir do poeira e o espesso silêncio da aldeia, e a aldeia mesma, me produziam uma estranha sensação de paralisia interior. Como se houvesse caído subitamente em um grande caldeirão sem tempo, no fundo do qual estava essa aldeia desconhecida, o italiano recostado contra a armação da porta, e o armazém onde muitos anos atrás íamos comprar barrinhas de menta.

Essa sensação me fez recordar a hora.

*A jornalista viajou a convite da Fundação Nuevo Periodismo Iberoamericano

Com informações da Folhapress.

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