© REUTERS / Marcos Brindicci (Foto de arquivo) 
No violento futebol argentino, mortes ligadas ao futebol não são uma raridade. Desde 1922, quando foi registrado o primeiro óbito relacionado ao esporte, 328 pessoas perderam a vida em incidentes ligados ao esporte. Mas há um ano que, mesmo na Argentina, foge à normalidade.
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Em 1968, River Plate e Boca Juniors, finalistas da Copa Libertadores neste sábado (24), às 18h, se enfrentaram no Monumental de Nuñez em um jogo pelo torneio local. No fim da partida, uma confusão no portão 12, que dava o acesso aos torcedores do Boca, resultou na morte de 71 torcedores, pisoteados e asfixiados pela multidão que se formou no local.
O incidente, que em 23 de junho deste ano completou meio século, é considerado até hoje como a maior tragédia do futebol do país.
Cinquenta anos já passaram e a Justiça nunca declarou um culpado ou esclareceu os motivos que resultaram na tragédia. Há diferentes versões para o que aconteceu naquela tarde de junho.
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Uma delas, contada por várias testemunhas, dá conta de que a saída dos torcedores boquenses estava bloqueada pelo portão, que não estava totalmente aberto, e pelas catracas que estavam localizadas nas laterais da escada, obstruindo o caminho.
"A isso se soma que a guarda de infantaria, em cima de cavalos com sabres e paus, amedrontava as primeiras pessoas que saíam", relata Héctor Novera, 62, sobrevivente da Porta 12, à Folha.
Empresário do ramo têxtil, Novera se diz "doente pelo Boca" e tinha 12 anos quando foi ao Monumental assistir à partida, acompanhado de um amigo da mesma idade.
Testemunha ocular da história, diz também que as luzes do acesso eram muito ruins. Com isso, torcedores que estavam no topo da escada não viam que outros paravam no portão e não conseguiam sair, resultando em uma espécie de avalanche.
"A escada estava úmida, os degraus estavam molhados. Alguns torcedores retrocediam por medo de serem reprimidos e golpeados [pela polícia]. À medida que as pessoas tentavam sair, iam caindo e foi-se produzindo uma pilha humana muito grande. Lamentavelmente, quem estava embaixo dessa pilha morreu asfixiado", conta.
Em 1968, a Argentina vivia sob ditadura militar, comandada à época pelo general Juan Carlos Onganía, que tomou o poder em 1966. Havia forte repressão por parte das autoridades, principalmente em manifestações populares como shows e jogos de futebol.
Naquele dia, Héctor Novera decidiu sair antes do apito final no Monumental. Seu amigo havia levado uma garrafada nas costas, arremessada pelos próprios torcedores do Boca que tentavam atingir os do River nas cadeiras do setor inferior. Com isso, deixaram o jogo antes da maioria.
"Tive muita sorte, porque se esperasse um ou dois minutos mais, podia ser perfeitamente um dos que ficou na pilha de gente. Éramos pequenos, com pouca força física", afirma hoje.
A tragédia, claro, deixou no jovem a lembrança trágica daquele 23 de junho. Mas ele conta que retornou ao Monumental de Nuñez muitas vezes para ver o clássico -o que não acontecerá neste sábado, pois as torcidas visitantes estão proibidas no país desde 2013.
Familiares de vítimas da tragédia chegaram a entrar na Justiça, pedindo ressarcimento. O River foi punido em 200 milhões de pesos da época. Clubes como Barcelona (ESP), Universidad de Chile, além da liga paraguaia, se ofereceram para amistosos em benefício das famílias, que não aconteceram.
A torcida do Boca Juniors passou a cantar durante as partidas uma música em referência ao episódio, cuja letra dizia, em tradução livre: "Não havia portão, não havia catraca, era a 'cana' (gíria para polícia) que batia com cassetete".
As queixas apresentadas pelos familiares lesados diante da Corte Suprema foram arquivadas. Em agosto de 1969, a grande maioria desistiu do recurso. Só dois familiares insistiram e receberam 140 mil pesos da AFA (Associação do Futebol Argentino) e do River Plate.
Hoje, a Porta 12, que dá para a Avenida Figueroa Alcorta, mudou de nome. Chama-se Porta L. Da tragédia, só há uma pequena lembrança. Uma placa, localizada ao lado do acesso, que foi colocada há dez anos e diz: "Em memória das 71 vítimas da Tragédia da Porta 12. 1968 - 23 de junho - 2008".
A homenagem foi um pedido de Diana Von Bernard, irmã de Guido, 20, que morreu no Monumental. Porém, o nome dele, assim como o das outras vítimas, não ganhou menção na placa.
"A vida, para muitos aqui na Argentina, não tem o valor que deveria ter. As famílias que perderam seus entes queridos, os amigos que perderam outros amigos têm uma ferida que não se recupera. Como sociedade, não aprendemos. Lamentavelmente, não aprendemos", completa Héctor Novera, que sobreviveu para contar o que outros não puderam. Com informações da Folhapress.