Em 'A Vegetariana', mulher se afasta da violência e quase vira planta

A personagem do título busca, de fato, se afastar da natureza animalesca que representa a violência no mundo

© Divulgação

Cultura Romance 30/11/18 POR Folhapress

O álbum de fotos estava meio escondido em cima da estante. Han Kang, aos 12 anos, conseguiu alcançá-lo e nunca mais sua vida foi a mesma.

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Nas páginas que abriu estavam as imagens do massacre de estudantes em Gwengun, província em que ela nasceu, há 48 anos. Tiradas por correspondentes estrangeiros, mostravam corpos despedaçados, que acabariam aparecendo em seu romance "Human Acts".

O episódio ocorreu em 1980, depois de um golpe militar. Ela tinha nove anos; quatro meses antes, sua família se mudara para Seul. "Morávamos numa casa humilde. Meu pai (Han Seung-won) era escritor. Tínhamos livros por toda parte, empilhados no chão, em cima da mesa, na cozinha. E eu adorava ler, achava que ia encontrar as respostas para as questões da existência. Quando percebi que os escritores faziam muito mais perguntas do que as solucionavam, me senti capaz de escrever", disse para a Folha de S.Paulo, em entrevista por Skype.

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Começou aos 14, indo estudar literatura contemporânea coreana na universidade. Lançou contos e poemas a partir de 1993, mas foi com "A Vegetariana" que ficou conhecida. A ideia para o livro surgiu de uma frase do poeta Yi Sang: "acho que os humanos deveriam ser plantas".

A personagem do título busca, de fato, se afastar da natureza animalesca que representa a violência no mundo. A partir de sonhos terríveis, em que se vê envolvida por membros mutilados e muito sangue, desiste de comer carne. Aos poucos, desiste também da comunhão carnal com o marido. A reação deste e da família conservadora é de violência e autoritarismo. Numa cena chocante, ela corta os pulsos depois que o pai, veterano da Guerra do Vietnã, força um pedaço de porco em sua boca.

O romance, escrito numa linguagem direta, objetiva, é dividido em três partes, originalmente novelas distintas. Yeong-hye não tem voz própria, a não ser pela descrição de sua vida onírica. Na espiral de loucura, erotismo bizarro e terror em que se lança e é lançada, sua forma delicada mas resiliente finca raízes na imaginação do leitor -literalmente, pois resolve seguir a máxima do poeta e viver apenas de sol e água.

"O livro tem muitas camadas. Gosto da ideia de deixar um certo mistério em torno da personagem, sobre seus motivos, seus desejos", diz Han. E continua: "Não vejo nela uma pulsão de morte. Tento colocar essas questões: o que é sanidade? O que é ser humano? O que é violência? O que é misoginia, estupidez?"

Suave, de uma elegância etérea, com um modo pausado e gentil de falar, Han se assemelha um pouco a sua vegetariana. "De certa forma, me sinto como ela, no sentido de recusar os padrões ", confirma. Budista por muito tempo, ela passou um período sem consumir carne. Teve de mudar de hábito a contragosto, por motivos de saúde. Tem um filho adolescente e dá aula de escrita criativa na Universidades de Seul.

Lançado na Coreia em 2007, "A Vegetariana" só foi traduzido para o inglês oito anos depois, vindo a receber o prestigioso Man International Booker Prize em 2016, no rastro de uma esteira de críticas entusiasmadas.

A edição ora lançada no Brasil pela Todavia, com tradução direta do coreano, não é, curiosamente, a primeira em nosso português -em 2013, antes, portanto, do sucesso internacional do romance e da autora, a Devir havia publicado sua tradução, também do coreano, hoje esgotada. A Todavia promete para o ano que vem, a edição de "Human Acts" (2014)

"Eu tinha nove anos quando aconteceu o massacre. Na época não compreendi a dimensão daquilo. Muito tempo depois é que senti a necessidade de dar voz àquelas pessoas. O processo era tão doloroso, que escrevia três ou quatro linhas por dia", conta. Isso talvez se deva também ao rigor com o estilo: "Dou muito importância a cada sentença. Leio em voz alta, apago, reescrevo, reescrevo de novo, até achar que está bom."

O romance é perturbador desde o início, em que um jovem recebe e ajuda a reconhecer as centenas de cadáveres dos estudantes massacrados. O olhar da autora é compassivo, mas não poupa o leitor de detalhes vívidos e escabrosos.

"Acho que esse livro faz par com 'A Vegetariana', no sentido de explorar a violência humana -e também nossa capacidade de resistência", pondera.

Narrado por vários personagens ("eu queria emprestar meu próprio corpo e voz para eles"), inclusive um rapaz morto, cuja alma se liberta de um pilha de chacinados e tenta compreender o que acontecera, "Human Acts", com sua beleza terrível, é "uma exumação de sentimentos enterrados", para usar uma expressão da própria autora. O que talvez defina toda sua obra, estranha e fascinante. Com informações da Folhapress. 

A VEGETARIANA

AUTOR Han Kang

EDITORA Todavia

TRADUÇÃO Jae Hyung Woo

PREÇO R$ 49,90 (176 págs.)

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