© REEUTERS / Tony Gentile (Foto de arquivo) 
"Roma" abre com uma longa cena em que o quintal de um casarão é ensaboado. Por minutos a fio, a água cheia de bolhas se avoluma no chão azulejado e aos poucos vai escoando pelo ralo.
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A vagareza está a serviço de uma proposta artística. O cineasta Alfonso Cuarón quer mergulhar o público no cotidiano modorrento de Cleo, a empregada indígena que vive no casarão dos patrões brancos, uma família abastada da Cidade do México.
É irônico que essa mesma proposta estética, plena na sala de cinema, será desfrutada na maioria em televisões, computadores e smartphones, estando o espectador em pleno poder de dar o "pause" e quebrar a experiência. Pois é na Netflix que foi parar esse que é talvez o longa mais paparicado do segundo semestre.
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Para o diretor, contudo, essa é uma discussão que faria sentido com "Gravidade", seu blockbuster anterior, e não com "Roma".
"Um filme mexicano, em preto e branco e falado em espanhol jamais teria a distribuição que ele está tendo agora", diz Cuarón à reportagem, por telefone, um dia depois de o longa ser selecionado entre os finalistas para o Oscar. Ele se refere ao fato de a Netflix ter programado "Roma" em várias salas de cinemas para habilitá-lo a concorrer ao prêmio. Só no México foram mais de 40 os lugares. O fuzuê, alimentado pela vitória no último Festival de Veneza, também ajudou a gigante do streaming a programá-lo em salas de São Paulo e Rio de Janeiro (com sessões esgotadas).
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Trata-se do projeto mais pessoal do cineasta mexicano e um retorno ao seu país de origem depois de grandes produções como "Gravidade", "Filhos da Esperança" e o terceiro "Harry Potter." "Não faria se não tivesse essa vivência em Hollywood", diz.
"Eu precisava me reconectar às minhas raízes e, para falar de quem sou, teria de falar de onde venho."
A Cleo da trama é inspirada numa Cleo de verdade, empregada doméstica viva até hoje e que trabalhou para os pais de Cuarón. Os personagens que orbitam seu universo -a mãe burguesa, as crianças irrequietas- são todos inspirados na família do cineasta no México dos anos 1970.
O diretor, hoje aos 57 anos, garimpou objetos da época e recriou cenários inteiros –lojas, casas, salas de cinema. O pano de fundo é a agitação que sacudiu aquele país. Ele recria meticulosamente o chamado Halconazo, massacre de estudantes por parte de pessoas ligadas ao Exército.
"Uma coisa informa a outra", diz Cuarón ao traçar paralelos entre os dramas privados dos personagens e os eventos históricos. "Queria falar de cicatrizes compartilhadas. A relação de abuso entre patrões e empregados é parte do mesmo sintoma do Halconazo e daqueles rapazes treinados para oprimir os outros.
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"Munido de câmera digital que reproduz a textura de filme analógico, ele mostra a relação ambivalente de Cleo com seus patrões. É uma interação que fará sentido particular em países como o Brasil, de relações pessoais imiscuídas com as laborais, herança do passado escravocrata.
"Nos nossos países, creio que essa compreensão seja mais profunda, mas me surpreende como, mesmo em países que não são latinos, as pessoas se sentem conectadas a Cleo", diz o diretor.
Ele afirma que a sociedade mexicana tem se debruçado sobre o tema das relações patrões-empregados após o lançamento do filme.
Para as filmagens, ele recrutou atores pouco conhecidos, inclusive a iniciante Yalitza Aparicio, indígena de 26 anos que vive Cleo. Rodou a história de forma cronológica, o que não é comum no cinema, e não entregou o roteiro ao elenco e à equipe.
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"Queria que eles não tivessem expectativas, que reagissem em tempo real ao que era proposto." Caurón, que também assina a direção de fotografia do filme, recheou tudo com um estilo maneirista, cheio de "travellings", mostrando que seu "Roma" é mais movido pela experiência sensorial do que por uma narrativa propriamente dita -o contrário da tradição americana e o oposto do catálogo da Netflix.
Roma
México, EUA, 2018.
Direção: Alfonso Cuarón.
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira.
Classificação: 14 anos.
Disponível na Netflix