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LEDA CARTUM*
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FOLHAPRESS - "Em persa temos um ditado que afirma, quando alguém olha algo com verdadeira intensidade: 'Tinha dois olhos e pediu mais dois emprestados'. Estes dois olhos tomados de empréstimo são aquilo que quero capturar" -é o que uma vez escreveu o iraniano Abbas Kiarostami sobre a própria obra.
Todo o seu trabalho, seja como cineasta, fotógrafo ou poeta, é atravessado pelo desejo de captar esses olhos secretos: aguçar a percepção, enxergar na imagem o que está antes, depois ou atrás dela.
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Para ler seus poemas, temos de compreendê-los também como parte desse desejo maior, parte da produção de um artista que costuma ser conhecido por seus filmes e fotografias.
"Uma grávida / chora em silêncio / um homem adormecido sobre a cama." Quem é essa mulher, e por que ela chora? O que a mulher sabe, e o que o homem ignora? "Pelo caminho um homem cansado / sozinho / a uma légua / do seu intento." Para onde vai esse homem? De onde vem? Há quanto tempo caminha?
Nada disso se explica no livro "Nuvens de Algodão", coletânea de poemas minúsculos do autor.
Traduzidos direto do persa e selecionados pelo editor Pedro Fonseca, eles eram chamados de haikus pelo próprio Kiarostami.
Além da proximidade formal com esses poemas japoneses, os motivos mais frequentes do livro -a natureza, os animais, as estações do ano- são, de fato, temas clássicos de Bashô, atualizados e inseridos no mesmo contexto dos filmes do diretor: "Um avião traça uma linha / em um céu azul / o primeiro dia do ano-novo".
O poeta descobre uma semelhança inaudita dos versos orientais com a linguagem do roteiro cinematográfico: concisão, descrição, observação, transparência, auto-omissão. Palavras que indicam ações, que evocam situações fora do que está escrito na página. "Uma velha monja / toma o café da manhã sozinha / barulho de chaleira fervendo".
Em seus filmes, as cenas mudas têm o mesmo espaço do que as faladas -ou muito mais. Deslocamo-nos do universo narrativo, as histórias se fazem através dos detalhes: duas pessoas num carro atravessam o Irã depois de um terremoto; um garoto procura a casa de seu amigo para devolver-lhe um caderno.
Na sua poesia, também os elementos mínimos conduzem histórias que não se explicitam: "Um potro branco / vem da névoa / e se esvai / na névoa". Surge nesses poemas, pontualmente, uma primeira pessoa. Mas o sujeito é sutil: ele se faz menos através da construção de uma interioridade, e mais pelo simples movimento do olhar.
Os versos nos colocam na posição de quem olha, e apontam, a partir de dentro, para aquilo que se vê -assim como pode fazer uma câmera subjetiva. "Deito-me / sobre a terra dura, / nuvens de algodão".
Pelas suas formas flexíveis, pelas presenças que se caracterizam através do que está ao redor delas, o diálogo mais profundo talvez seja com a poesia mística persa -que Kiarostami conta ter ouvido de seu pai quando era criança.
Jalaladim Rumi, o mais traduzido poeta dessa tradição, em muitos de seus versos convida o leitor a fechar a boca, para que possa conversar de outro modo: "Silêncio! / E depois, mais silêncio. / Não uses a boca para falar / A boca é para provar dessa doçura" (tradução de José Jorge de Carvalho).
Abbas Kiarostami escutou muito bem o que disse -e o que não disse- o seu conterrâneo: suas palavras e cenas nos emprestam outros olhos com os quais, para ver melhor, é preciso ficar em silêncio.
NUVENS DE ALGODÃO
Avaliação ótimo
Preço R$ 59,90 (189 págs.)
Autor Abbas Kiarostami; tradução de Pedro Fonseca
Editora Âyiné
*Leda Cartum é escritora e publicou 'O Porto' (Iluminuras).