© Reuters / Nacho Doce
MARINA ESTARQUE E FLÁVIA FARIA - SÃO PAULO, SP - Os registros de crimes relacionados à intolerância no estado de São Paulo atingiram um pico durante as eleições de 2018. Em agosto, setembro e outubro, meses de campanha, foram 16 casos por dia, em média, o que representa mais do que o triplo dos 4,7 registros diários ao longo do primeiro semestre.
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O aumento começa em julho e atinge o ápice do ano em outubro, mês da votação de primeiro e segundo turnos, com 568 boletins de ocorrência -pouco mais de 18 por dia.
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O total apenas do mês das eleições representa 67% do acumulado dos seis primeiros meses do ano e é mais que o triplo do observado em outubro de 2017, quando foram 159 registros, média de 5 por dia.
Os números recuam em novembro, mas seguem altos em comparação ao primeiro semestre do ano passado.
Os dados, obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação, são de boletins de ocorrência registrados no estado para crimes motivados por algum tipo de intolerância: por homofobia ou transfobia, racial, por etnia ou cor, origem, religião e outros.
A motivação por intolerância é informada em um campo no boletim de ocorrência incluído em novembro de 2015, a partir de uma demanda da comunidade LGBT. Caso o policial ou a vítima assinalem que houve intolerância, outro campo aparece para que seja incluído o tipo de preconceito a ser registrado.
Nos meses eleitorais, as ocorrências de intolerância religiosa cresceram 171% em relação ao total dos três meses anteriores. As de homofobia, 75%, e as de intolerância por origem, 83%. Registros relacionados a preconceito de cor ou raça aumentaram 15%.
A defensora pública Juliana Belloque diz que notou uma alta das denúncias, o que motivou a criação do Observatório da Violência por Intolerância, da Defensoria Pública de São Paulo, em outubro do ano passado.
"É até natural algum aumento em eleições em geral, mas, em 2018, houve um pico muito agudo, inclusive de violência física", diz ela, coordenadora do observatório. Segundo a defensora, as denúncias arrefeceram após novembro.
O presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis, que também reuniu casos no período, disse que a situação era alarmante. "Começaram a pipocar muitas denúncias graves. Nós sabemos que o país tem essa cultura [homofóbica], aí quando vem o presidente e abre a porteira, os demônios saem para passear", diz.
Toni Reis se refere ao presidente Jair Bolsonaro (PSL), que, em 2011, chegou a dizer que preferia ter um filho morto a um filho gay.
Em outubro do ano passado, após registros de violência pelo país cometidos por alguns de seus eleitores, Bolsonaro divulgou uma mensagem na qual dizia dispensar o "voto e qualquer aproximação de quem pratica violência".
"A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar", escreveu o então candidato ao Planalto, que foi alvo de um dos episódios mais violentos da campanha ao sofrer um ataque com faca em Juiz de Fora (interior de Minas Gerais), em setembro.
Os registros que mais cresceram no período eleitoral foram de intolerância religiosa, o que não passou despercebido por sacerdotes como o babalorixá Diego Montone, 33.
Desde setembro, o portão do seu terreiro de candomblé, na zona leste de São Paulo, amanhece sujo de óleo. "Eles derramam na minha porta para ungir e tirar o demônio que eles acham que habita meu lar. É uma agressão comum a terreiros. Me sinto invadido e desrespeitado."
Como presidente do movimento Brasil Contra a Intolerância Religiosa, Montone também percebeu um aumento nas denúncias de setembro a novembro. Para o advogado Hédio Silva Júnior, atuante em casos do tipo, o discurso de ódio esteve muito presente nas últimas eleições.
"Antes esse discurso era promovido por religiosos, mas agora chegou à política e ao aparelho de Estado. As pessoas que se sentiam impunes para praticar intolerância agora se sentem autorizadas", diz ele, que foi secretário de Justiça do estado de São Paulo.
Segundo dados do Disque 100, canal de denúncias do governo federal, as religiões mais atacadas são as de matriz africana, alvos de quase 35% dos casos do primeiro semestre de 2018.
A herdeira do Centro Cultural Eyin Osun, na zona leste de São Paulo, Gabriela Beck, 29, tem sofrido com essa perseguição maior. No início do mês, um vizinho do terreiro de candomblé agrediu um idoso que frequenta o local, segundo boletim de ocorrência.
"Os ataques já ocorrem há anos, mas pioraram. Me sinto desamparada pelos poderes públicos. Precisei contratar um segurança particular para as festividades."
O orientador socioeducativo Luiz Fernando Uchoa, 35, homem trans e gay que trabalha em um centro municipal de diversidade em São Paulo, passou a esconder seu crachá, que tem a bandeira LGBT, por medo de ataques.
Uchoa conta que foi insultado quando foi votar em Guarulhos, na Grande SP. "Estava com uma camiseta com o arco-íris, e um mesário, que é meu vizinho, tentou me impedir de votar. Falou que veado tem que morrer e partiu para cima de mim." Ele diz que não fez boletim de ocorrência por medo de retaliações.Outro tipo de intolerância que cresceu no período foi contra a origem das vítimas.
Em setembro, os irmãos nigerianos Shakiru Akanbi, 28, e Owlabi Mustapha, 41, foram agredidos por seguranças do Metrô em uma confusão envolvendo um Bilhete do Idoso na estação República.
Na ocasião, segundo Shakiru, um dos seguranças o teria chamado de "africano folgado". Uma mulher de origem camaronesa, que tentou intermediar a situação, teria sido chamada de "faxineira" pelos funcionários.
Imagens registradas por pessoas que passavam pelo local mostram os irmãos sendo agredidos com cassetetes. Nos vídeos, é possível ver bastante sangue nos pontos em que foram atingidos.
Os dois tiveram lesões em diversas partes do corpo, e Owlabi precisou levar pontos em um ferimento na cabeça.
"Meu irmão ficou no chão, sangrando. Eles fizeram isso porque a gente é africano, porque é negro. Havia outros brasileiros lá, mas foi em nós que eles bateram", diz Shakiru.
Owlabi e Shakiru registraram boletim de ocorrência e, por meio da Defensoria Pública, entraram com uma ação judicial de reparação por danos morais.
Em nota, o Metrô disse que uma das pessoas envolvidas na situação agrediu um dos agentes de segurança e que, em inquérito instaurado pela Delegacia do Metropolitano de São Paulo, o funcionário figura como vítima.
Os seguranças envolvidos, contudo, foram afastados para averiguação. O Metrô disse ainda que não foi notificado da ação da Defensoria.
A delegada titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), Daniela Branco, diz que o aumento da intolerância por origem também ocorreu em 2014.
"Na eleição da Dilma [PT] e agora do Bolsonaro, com essa disputa da direita e esquerda, notamos que houve mais crimes contra nordestinos", diz.
Por ser referência para delitos de intolerância, a delegacia recebe muitos encaminhamentos de outros órgãos. "Acabam vindo com um certo atraso, então acho que vamos ver esse aumento [dos números] dentro de alguns meses."
Os registros de intolerância no estado praticamente dobraram em 2018 em relação ao ano anterior. De janeiro a novembro, foram 3.191 ocorrências, quase dez por dia. No mesmo período de 2017 foram 1.607, cerca de 5 por dia.
Os números até novembro de 2018 também representaram um aumento de quase 60% quando comparados ao ano de 2016 inteiro, quando houve 2.009 registros. Mais da metade das ocorrências de 2018 foram de intolerância religiosa (55%), seguidas de preconceito racial (21%) e homofobia ou transfobia (16%).
O crime que aparece com mais frequência em 2018 é o de injúria (27%), seguido de calúnia (11%) e difamação (6%) -um mesmo boletim pode conter mais de um delito.
Ainda que os números impressionem, especialistas afirmam que há muita subnotificação. Muitas vítimas de intolerância evitam registrar as ocorrências por medo de represálias ou de sofrerem discriminação novamente ao procurar uma delegacia.
Por isso, especialistas recomendam que órgãos especializados sejam expandidos e fortalecidos. "Nessas instituições é possível capacitar melhor os agentes públicos, que vão estar mais sensibilizados para atender esse público específico", diz Belloque, da Defensoria Pública.
Os crimes de preconceito estão previstos na lei federal 7.716, de 1989, e incluem delitos contra raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
No Código Penal, há também a injúria qualificada, que são ofensas pela "raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência".
"No caso da intolerância religiosa, há ainda os crimes contra o sentimento religioso, no Código Penal, como impedir ou ultrajar culto ou objeto", diz o promotor de Justiça e professor de Direito da PUC-SP Christiano Jorge Santos.
Como as leis não incluem a homofobia, esse tipo de intolerância é enquadrada como crime comum, como lesão corporal, injúria ou difamação, afirma o professor de direito da FGV Thiago Amparo. "No entanto, a homofobia ou transfobia podem ser agravantes, consideradas como motivo torpe ou fútil", diz. Com informações da Folhapress.