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A sexta-feira (25) começou como um dia normal para os amigos Cláudio Pereira da Silva e Levi Gonçalves da Silva, que há mais de dez anos trabalhavam no recolhimento de todo tipo de sujeira que caía indevidamente nos vagões de transporte de minério da Vale na Mina do Córrego do Feijão, na zona rural de Brumadinho (MG).
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Como ocorria ao longo de todo o ano, eles eram pegos em suas casas de caminhonete pelo motorista de uma empresa terceirizada, Marcelo Gonçalves, 26, que os deixava às 8h40 no portão da Vale e voltava para buscá-los pontualmente às 20h40. Os rodízios eram de 12 horas na ativa por 36 horas de descanso.
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A mina não parava o ano inteiro: Natal, Ano Novo, não importava, os funcionários da Vale em sistema de rodízio poderiam trabalhar em qualquer dia da semana ou data especial do ano.
No caminho à mina naquela manhã, Claudio e Levi conversaram amenidades com o motorista Marcelo. "Lembro que o Claudio disse 'vamos brincar um tiquinho'. Brincar ele quis dizer trabalhar", disse o condutor.
Os amigos carregavam suas mochilas com o EPI (Equipamento de Proteção Individual), que incluía óculos, luvas, colete reflexivo, capacete e cinto de segurança.
O trabalho exigia grande perícia: do alto de uma estrutura de metal, eles pinçavam nos vagões objetos como garrafas de plástico, tecidos, com uma grande lança de metal, chamada de "finco". Se a sujeira fosse muito grande, eles tinham a autoridade para mandar, pelo rádio, parar os vagões até resolver a situação. O minério não podia ser contaminado por outra substância.
Marcelo dirigiu a camionete por cinco minutos do centro urbano do Córrego do Feijão, o bairro rural de Brumadinho com cerca de 400 habitantes onde moravam Claudio e Levi, até a mina do Feijão. Diferentemente dos outros dias, contudo, não tornaria mais a ver os amigos: quatro horas depois Cláudio estaria morto, e Levi, desaparecido.
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Jhonatan Júnior, 22, tem certeza de que tudo começou às 12h28, porque ele olhou o relógio no momento em que ouviu "um estralo" -ele falou sobre esse horário à Folha de S.Paulo um dia antes de as TVs revelarem um vídeo de segurança da Vale em que o tempo marca exatamente 12h28.
Era um barulho que ele "nunca tinha escutado", que a princípio confundiu com o tombamento de um caminhão na estrada.
Júnior subiu correndo a escada de sua casa no Córrego do Feijão e se posicionou num ponto a partir do qual "dá pra ver a serra toda". "Aí eu vi onde era verde sendo consumido por uma língua preta muito esquisita, bem consistente, dava para ver que era uma lama consistente. Desceu e estava fazendo barulho demais, quebrando tudo, chegou a vibrar a terra", contou.
Anos atrás, a Vale construiu uma grande lagoa artificial que, para Júnior, teria o papel de arrefecer o impacto da "descida" da barragem, mas não foi isso o que aconteceu. "Ela [lagoa] não conseguiu 'suprir'. Aí a lama deu um tapa no canto com mais força lá pra frente e foi embora."
Quando chegou ao refeitório, às salas administrativas e ao setor de enfermagem da mina, a avalanche de lama atingiu, segundo estimativa de pessoas envolvidas no resgate, de 250 a 300 funcionários da Vale e de empresas terceirizadas, entre mortos e desaparecidos -os números oscilam a cada momento.
Uma das profissionais deverá ter sido a técnica de enfermagem Fernanda Christiane da Silva, 34, que trabalha há seis anos na mina do Feijão e costumava falar de seu medo de a barragem se romper, diz seu pai, o motorista de caminhão Nelson Silva, 60.
Pouco antes do desastre, ela ligou para ele e comentou que havia acabado de almoçar e ia para o posto de saúde na mineradora. Seu nome está na lista dos desaparecidos mas, na quinta (31), o pai dizia ter perdido as esperanças. "A Fernanda está enterrada lá. Foi um crime da Vale", disse a um vizinho que passava na rua.
Ao mesmo tempo em que atingia as dependências da mineradora, abrindo um vale onde antes existia uma densa mata, a lama devastou, à esquerda, o sítio de Paulo Giovani dos Santos.
Ele é descrito pelos familiares como um homem ligado à natureza, que usou sua aposentadoria para construir uma casa com piscina a fim de receber os amigos e criar porcos e galinhas.
Eles dizem que, no momento do desastre, Paulo provavelmente estava deitado em seu quarto. Na última sexta-feira (1º), uma semana depois, ele continuava desaparecido.
De sua casa numa parte alta do Córrego, Jhonatan Júnior continuava olhando a "língua preta" de lama avançando sobre tudo. Ele calculou que ela demorou cerca de dois minutos até atingir a pousada Nova Estância, onde já se hospedaram celebridades que foram visitar o Instituto Inhotim.
Até agora não se sabe o número exato de turistas e hóspedes atingidos no local, mas há certeza sobre os moradores do Córrego, todos conhecidos na comunidade, como Diomar Custódio dos Santos, Jussara Passos, Cristina Araújo, os donos Márcio Mascarenhas, seu filho e a mulher, Cleosane, entre outros.
Às 12h20, apenas oito minutos antes do rompimento da barragem, Diomar, cozinheira na casa dos donos da pousada, enviou uma mensagem no celular para seu neto, o estudante de direito Jeferson Custódio, 19. Era uma fotografia com os dizeres: "A vida pode parecer complicada, difícil, mas lembre-se, Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores guerreiros".
Outra das vítimas na pousada foi o próprio irmão de Jhonatan, Reinaldo Guimarães, 30, que fazia serviços gerais para os donos do local. Até sexta, seu corpo era o único do desastre identificado e enterrado no pequeno cemitério de Córrego do Feijão.
Quando viu a lama atingir a hospedagem, Jhonatan chamou seu irmão Michel, que com outros amigos partiu para o local e ainda conseguiu resgatar duas pessoas com vida, como mostra um vídeo compartilhado milhares de vezes na internet. Michel machucou a perna na ação. O corpo do irmão Reinaldo foi encontrado depois pelos bombeiros. "Eu não consegui correr atrás do Michel porque eu fiquei paralisado, paralisado", repetiu Jhonatan.
Logo depois do rompimento da barragem, e sem saber o que se passava, a dona de casa Maria das Dores Barbosa deixou ligada sua máquina de lavar roupas e foi regar plantas no quintal de sua casa no Córrego. Nesse momento ela teve um mau pressentimento, pois a água parou de sair da torneira, e a máquina deixou de funcionar.
"Falei, 'ué, sem luz e sem água, que quê isso?'", disse Maria. Em seguida começou a circular a notícia do rompimento, e ela se desesperou ao pensar no filho, Rodrigo Henrique Oliveira, 31, operador de máquina no canteiro da Vale. Até esta sexta-feira (1º), ele não havia sido localizado.
Maria e seu marido Noé Henrique Oliveira integram uma das famílias mais antigas do Córrego. Noé chegou em 1974. A família disse ter perdido sete integrantes no desastre de Brumadinho, entre filhos e primos. "O meu filho dizia que a barragem era muito grande. Um dia ele comentou, 'mãe, se Deus um dia não tiver dó e aquilo ali arrebentar, não sobra ninguém'. A gente comentando em casa. Mas, como diz o outro, todo mundo precisa trabalhar", disse Maria das Dores. Com informações da Folhapress.