© Reuters / Adriano Machado
Para Ana Clara, aqueles sacos cinzas que às vezes vêm pendurados nos helicópteros são a comida que os bombeiros levam para não passarem fome durante as buscas. Para Estefany, é onde eles carregam os animais encontrados mortos na lama.
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Está difícil para as famílias responder às duas meninas de 9 anos o que realmente está ali dentro: os corpos das centenas de vítimas que vão sendo achados pouco a pouco em Brumadinho (MG), em meio aos rejeitos da barragem da Vale que ruiu há mais de duas semanas.
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"Não tenho coragem, não. Eu digo que são as vacas, os bois que estão tirando", diz a diarista Cláudia Pereira, 40, mãe de Estefany. Mas essa não é a única dúvida que ela e outros pais das regiões afetadas da cidade têm que responder.
A lama vai chegar até aqui? A outra barragem vai estourar? O que é uma barragem? E se o helicóptero cair em cima da nossa casa? A gente pode se mudar? As perguntas, comuns entre as crianças que moram nessas áreas, muitas vezes vêm acompanhadas de choro e insônia.
Sem aulas ainda nas redes municipal e estadual, a ansiedade aumenta. O ano letivo deveria ter começado na última segunda-feira (4), mas, por causa do desastre e do bloqueio dos acessos às escolas, só deve se iniciar a partir desta semana.
O plano da Defesa Civil de Minas Gerais é criar uma rota de transporte escolar a ser feita por vans da Vale, passando por uma área segura dentro da mina da empresa -a Prefeitura de Brumadinho desconhecia a estratégia quando ela foi anunciada. O caminho provisório será feito enquanto uma ponte é construída pela mineradora.
No Córrego do Feijão, bairro rural mais perto da sede destruída da Vale, são cerca de 95 alunos sem aulas. A única escola que atende a comunidade não pôde voltar a funcionar porque está servindo de base e hospedagem para parte dos bombeiros e socorristas que atuam nas buscas.
Tanto ali quanto no bairro Parque da Cachoeira, também atingido pela lama da barragem, as crianças estão tendo que lidar com perdas próximas. Thaís (nome fictício), 7, disse à mãe que espera que o tio desaparecido esteja "no mato, se escondendo". Já sua irmã, de dez anos, "não queria que aquele dia tivesse acontecido".
Para Luana (nome fictício), 11, não é a primeira das ausências. "Ela já tinha perdido a mãe e um vizinho, então tem trauma de morte. Agora vou ver se levo no psicólogo, porque ela tem acordado chorando", conta a avó Lucimar Osório, 54.
Com as cenas da lama passando em exaustão na televisão e toda a movimentação na cidade -que até então era pacata-, não há muito jeito de controlar as informações que chegam.
"Não adianta desligar a televisão, da porta de casa eles veem tudo", diz a dona de casa Juliane Alves, 31.Segundo o terapeuta social Reinaldo Nascimento, o que as crianças precisam agora é de "ritmo, de relações fortes e de experiências positivas".
Também precisam de tempo: "Elas jamais devem ser obrigadas a falar sobre o que aconteceu. Elas precisam se sentir seguras", aconselha.
Nascimento faz parte do projeto Pedagogia de Emergência, que ajuda crianças a retomarem a vida em locais com guerras e catástrofes, como Iraque ou Faixa de Gaza, por meio de atividades lúdicas. Ele foi a Brumadinho na última semana para oferecer um workshop com professores de três escolas particulares.Falou sobre o que é o trauma, suas características, tipos e fases e, principalmente, sobre como lidar com os alunos na sala de aula. "Muitas crianças, principalmente as pequenas, nem entendem realmente o que aconteceu. Estão assustadas porque os pais estão assustados", afirma.
De acordo com ele, é possível que elas apresentem dores de cabeça e de barriga, sinais de tristeza e de raiva, dificuldades de atenção e de concentração. Parte delas também pode voltar a chupar o dedo, fazer xixi na cama ou pedir para dormir com os pais.
Os sonhos -ou pesadelos- são recorrentes. Estefany, 9, viu um dos seus piores se concretizar naquela sexta-feira. Alguns dias antes da tragédia, sonhou com a lama "do lado todinho de lá" do seu bairro. "Acho que ela ficou com isso na cabeça porque eu sempre falei que tinha medo que estourasse", relata a mãe, Cláudia.
A menina desvia o olhar e vira o rosto quando ouve sobre o assunto, deixando a borboleta rosa pintada na bochecha à mostra. Prefere ir brincar no pula-pula com os amigos. Enquanto as aulas não voltam, ela participa das brincadeiras, esportes e atividades culturais nos postos de apoio aos bairros atingidos.Na tenda montada no Parque da Cachoeira, o Governo de Minas Gerais e parceiros ofereceram as recreações até a última quarta-feira (6). No Córrego do Feijão, voluntários e a Vale improvisaram uma sala em um restaurante desativado.
Parte dos pais reclama das comidas oferecidas às crianças, como biscoitos e sucos de caixinha, e do fato de os "cuidadores" serem de fora da comunidade, o que gera insegurança. Outra parte, no entanto, diz que os espaços temporários são a única distração enquanto as aulas não começam e se preocupa com a sua retirada.
O barulho dos helicópteros, outro dos pesadelos de muitas das crianças de Brumadinho, ecoa o tempo todo por ali. "Eles estão vendo que o nosso céu não tem mais estrelas, tá cheio de corpos pra lá e pra cá. O Sol tem hora que até some. Tão pequenininhos e já têm uma história tão triste pra contar", afirma Juliane, mãe de dois. Com informações da Folhapress.
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