© REUTERS/Annegret Hilse
GUILHERME GENESTRETI* - BERLIM, ALEMANHA - Num caso, mulheres são seguidamente espancadas, torturadas, estupradas e esquartejadas. No outro, uma moça desafia centenárias tradições machistas de seu país numa luta por integridade. Mais opostos impossível, "The Golden Glove", do alemão Fatih Akin, e "God Exists, Her Name Is Petrunija", da macedônia Teona Strugar Mitevska, atiçaram os movimentos #MeToo e Time's Up no Festival de Berlim. Já são dois dos títulos mais comentados da competição.
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A produção de Akin segue a mesma senda de "A Casa que Jack Construiu", de Lars von Trier. No centro da trama há um serial killer bastante patético que tem predileção por vítimas do sexo feminino. Mas enquanto o cineasta dinamarquês preferia testar o estômago do público despejando cenas atrozes em um grande tratado sobre o mal, seu colega alemão quer é induzir o enjoo por vias mais primais do que propriamente intelectuais.
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Pois em "The Golden Glove" transbordam imagens de asco -do apartamento fétido em que o assassino Fritz Honka (Jonas Dassler) mutila prostituas incautas ao bar encardido em que abate suas presas e que dá título ao filme. Os corpos que desfilam no filme são quase sempre marcados por dentes podres, pele flácida e dedos engordurados. Mesmo as cenas de violência -e são várias- querem evocar mais nojo do que pavor.
A história é inspirada no caso real de um criminoso que trilhou pela zona do baixo meretrício da Hamburgo nos anos 1970 e costumava manter as partes mutiladas de suas vítimas guardadas no sótão de sua casa. Ele encharcava o apartamento com perfume para que os demais moradores do prédio não sentissem o cheiro podre.
Na sua primeira sessão à imprensa, o filme foi recebido com gemidos pelo público, em especial nos vários momentos em que Honka aparece serrando braços e pescoços das prostitutas.
Akin, claro, não passou imune a críticas quanto ao excesso de cenas em que mulheres são agredidas. "Quando se faz um filme sobre violência sexual, você tem de mostrá-las", disse, em conversa com jornalistas. "Apoio o #MeToo, mas ele não pode virar censura."
O que "The Golden Glove" tem de provocador, "God Exists, Her Name Is Petrunija" exala de apaziguador. Embora engenhoso na forma como tece o retrato do machismo na Macedônia, o longa é um tanto didático nos momentos em que tenta passar mensagens. É, ainda assim, um forte concorrente ao Urso de Ouro numa era em que os debates sobre igualdade de gêneros mobilizam a indústria audiovisual.
A Petrunija do título, interpretada por Zorica Nusheva, é uma mulher em seus 30 e poucos anos que vive com os pais numa pequena cidade do interior do país balcânico. Graduada em história, ela nunca conseguiu emprego e acaba de perder mais uma chance como secretária de uma oficina de tecelagem. "Não serve nem para foder", reclama o sujeito que seria o seu chefe ao entrevistá-la.
Eis que topa com uma tradicional procissão ortodoxa que consiste no padre local atirar uma cruz num rio, e os homens do vilarejo entrarem na água gelada para resgatá-la. Aquele que consegue terá sorte o ano todo. Sem grandes explicações, a moça mergulha ali e consegue reaver o objeto, para revolta geral.
A ação de Petrunija toca num nervo da sociedade macedônia -mais exatamente, na regra nunca antes questionada de que só homens podem nadar para recuperar o artefato religioso. Acossada pela turba indignada do lado de fora da delegacia, a personagem acaba revelando um impasse. Não cometeu crime, uma vez que lei nenhuma a proíbe de fazer o fez. Ainda assim, é mantida presa, descortinando a promiscuidade entre Igreja e Estado na manutenção de um machismo estrutural.
Também padece de excesso de didatismo outro dos concorrentes fortes dessa edição. "Mr. Jones", da polonesa Agniszka Holland, se propõe um manifesto a favor do jornalismo em tempos de regimes autoritários. Aqui, a diretora de "Rastros" e "Filhos da Guerra" recupera a trajetória do repórter galês Gareth Jones, que revelou como o regime stalinista condenou milhões de ucranianos à fome na década de 1930.
Seu relato teria inspirado George Orwell a escrever "A Revolução dos Bichos", famosa alegoria sobre como os animais se livram da opressão humana numa fazenda para, depois, perpetuarem outra forma de exploração. Holland enche a tela com imagens de porcos, que representam no livro os altos funcionários do Partido Comunista, e faz uma menção ao Grande Irmão, que apareceria em "1984".
James Norton interpreta o personagem-título, ex-conselheiro de relações internacionais do primeiro-ministro britânico que resolve apurar o que há por trás da misteriosa espiral de crescimento econômico da União Soviética. Na bem vigiada Moscou, contudo, o governo está blindado. A suspeita de algo errado o leva às fazendas comunais da Ucrânia, bem guardado segredo para a prosperidade da superpotência socialista.
É ali, escondido do governo, que Jones percebe que a população agrária está morrendo de fome em meio ao rigoroso inverno sob o descaso das autoridades do governo central. Ali, cadáveres se acumulam na neve, e crianças comem carne humana para sobreviver. O repórter incumbe a si mesmo de revelar a verdade para o mundo, mas terá de safar de todas as forças políticas, inclusive do Ocidente, que não acham conveniente que ela venha à tona.
Holland constrói essa história como um thriller eletrizante, lançando mão de um ritmo hollywoodiano que não aparecia nos seus outros filmes. Martela sua mensagem da maneira menos sutil possível, com direito a cenas em que a multidão se aglomera em torno de pães mofados tendo ao fundo um cartaz em que Stálin distribui comida aos montes.
*O jornalista se hospeda a convite do Festival de Berlim