Crise leva 2,7 milhões à pobreza em seis meses na Argentina

O Unicef lançou recentemente um alerta de que as crianças argentinas estão mostrando nível inferior de ingestão de proteínas, num país em que antes se consumia carne diariamente, das favelas às mansões

© Reuters

Mundo américa do sul 06/04/19 POR Folhapress

SYLVIA COLOMBO - BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - No fim de março, esta repórter foi levar um saco de lixo a um "basurero", lixão de plástico que há nas ruas de Buenos Aires. Esses grandes recipientes têm seu conteúdo removido pela prefeitura no meio da noite. Ao abrir a tampa, no entanto, para a minha surpresa, havia uma pessoa ali dentro.

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"Desculpe, senhora, já saio", ouvi a voz que saía do meio das sombras e do mau cheiro.

Constrangida, dei uns passos para trás. O sujeito então saiu, carregando sacolas de plástico. Enquanto eu jogava meu lixo fora, Matías, 26, desempregado, rasgava as bolsas e separava alguns itens.

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"Aqui sempre tem alguma comida", disse, apontando para os dois cafés e uma popular loja de empanadas na esquina. Separou restos de pizza, um cobertor de bebê rasgado e outros itens. Meteu tudo em uma mochila e saiu desajeitado, mas com cara de satisfeito.

Cenas como essa têm sido comuns na Argentina. Além da corrida aos "basureros" antes de os caminhões de lixo passarem, há a movimentação dos que dormem nas ruas em colchões e se aproximam dos supermercados para buscar algo que alimente a família.

Mas o empobrecimento da população não atinge só as classes menos favorecidas. O Unicef lançou recentemente um alerta de que as crianças argentinas estão mostrando nível inferior de ingestão de proteínas, num país em que antes se consumia carne diariamente, das favelas às mansões.

Muitas estão tendo de trocar a antiga dieta por outra, cheia de carboidratos. "Até uns anos atrás eu fazia bife à milanesa para meus filhos quase todo dia, e ao menos uma vez por mês reuníamos a família para um 'asado' [churrasco)", diz Dolores Úrzua, 38, moradora de Quilmes, na periferia de Buenos Aires. "Agora, comprar carne está muito difícil. O jeito é substituir por macarrão e, de vez em quando, frango."

Cinemas e restaurantes estão mais vazios e, nos últimos meses, dois shows internacionais que ocorreriam no Luna Park, principal local de espetáculos da capital, foram cancelados pois não foram vendidos ingressos suficientes para pagar a vinda do artista.

A crise econômica começou a se agravar no fim do primeiro semestre de 2018, quando o dólar arrancou em disparada –em um ano, quase duplicou seu valor frente ao peso.

O governo, já endividado, teve de acudir a uma linha de crédito do Fundo Monetário Internacional, que pediu uma política de austeridade mais dura em contrapartida.

A política de ajustes de preços, cortando subsídios da era kirchnerista (2003-2015), que já vinha ocorrendo de modo gradual, começou a se acelerar e a impactar ainda mais o bolso dos argentinos.

"De repente, tudo o que um assalariado de classe média baixa ganha, chega, com sorte, a cobrir gastos de transporte, comida, gás e despesas da casa", afirma o motorista de Uber Alexis Moreno, 32, que há dois meses perdeu seu emprego numa fábrica de tecidos.

O desemprego está em 9,1%, com a taxa de emprego informal beirando os 40% –eram 34% no início da gestão Macri.

Na semana passada, o Indec, o IBGE argentino, divulgou os números oficiais da pobreza, que cresceu quase 6 pontos percentuais em um ano. Hoje, 32% da população está abaixo da linha de pobreza, e 6,7% são considerados indigentes.

Durante o kirchnerismo, o Indec esteve sob intervenção. Desde 2015 não maquia mais os dados, e a realidade não é animadora. São 12,9 milhões de pobres e indigentes. Destes, 2,7 milhões entraram na categoria nos últimos seis meses.

A inflação acumulada de 2018 foi de 47,6% –e continua aumentando neste ano. Foi de 2,9% em janeiro a 3,5% em fevereiro. Os economistas preveem que o índice de março se apresente em torno de 4%.

Com a pobreza, aumentou também a desigualdade –10% dos lares mais ricos ganham 20 vezes mais que os 10% mais pobres. Uma brecha que aumentou em 3 pontos percentuais em relação a 2018.

A obsessão de boa parte da população afetada é o que virá nos próximos meses. Com o inverno, as casas costumam aumentar o uso de gás e eletricidade para a calefação.

O gás, antes subsidiado e que nem sequer era percebido como gasto pela classe média, agora, de tão caro, se paga em parcelas. Um aumento de 29% nas tarifas está previsto para o começo do inverno.

Os chamados "tarifaços", em que se aumentam os preços dos serviços após a retirada de subsídios, desgastam a popularidade do presidente, hoje em 30%. Só os "tarifaços" de gás já acumulam mais de 1.000% desde o início da gestão Macri, em 2015.

Enquanto isso, o desconforto social vem sendo visto nas ruas, com greves e piquetes. Na última quinta (4), houve uma manifestação dos sindicatos no centro de Buenos Aires. Outras categorias também têm se mobilizado.

Os aposentados pedem a revisão do corte de seus benefícios, feitos na última reforma da Previdência. Hoje a aposentadoria mínima, com a qual vivem 8 milhões de idosos no país, é de 10.400 pesos (R$ 918).

Para o governo argentino, que buscará se reeleger em outubro, "o pior já passou", frase usada desde o começo do ano pelo presidente Macri e pelo ministro da Economia, Nicolás Dujovne, apesar de os índices macroeconômicos não confirmarem isso.

No começo de seu mandato, Macri disse: "Se no final de minha gestão eu não tiver reduzido a pobreza, terei falhado". A frase tem sido lembrada por seus adversários políticos com frequência.

Em sua defesa, Macri tem dito que os ajustes de hoje darão frutos amanhã. "Sei o que estamos sofrendo. Temos de aguentar, estou convencido do que estamos fazendo, de que este é o caminho certo."

Indagado na semana passada sobre a inflação que não é contida, Macri foi até poético: "Em nenhum momento há mais escuridão do que no segundo antes do amanhecer".

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