Brasileira deixa o Mais Médicos por falta de condições e de pagamento

Ananda Conde, que atendia a população indígena, desistiu do programa após dois meses

© Arquivo pessoal

Brasil Saúde 07/04/19 POR Folhapress

FABIANO MAISONNAVE - MANAUS, AM (FOLHAPRESS) - A indigenista Ananda Conde ingressou no curso de medicina com o objetivo de trabalhar com saúde indígena. Entrou para o Mais Médicos assim que se formou, mas as condições de trabalho na Terra Indígena Ianomâmi (AM/RR) a fizeram desistir após dois meses. Aprovada em um concurso da Marinha, ela acredita que as Forças Armadas possam oferecer melhores condições de trabalho para realizar seu sonho de atender as populações tradicionais da Amazônia. Leia o depoimento da médica.

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Terminei a primeira graduação, em jornalismo, em 2008, e já saí de Brasília para trabalhar com proteção de povos indígenas isolados. Fui direto para Rondônia, onde participei de uma capacitação de uma ONG, para atuar nessas áreas de frente de proteção etnoambientais, que lidam com essa temática.

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No vale do Javari (fronteira do Amazonas com o Peru), a gente fazia fiscalização, localização etnoambiental, lidava com essa questão de identificar quem eles são, mas sem fazer o contato. Fazia expedições de 20 a 30 dias. Depois de um tempo, saí da ONG e fui contratada pela Funai.

Fiquei cerca de quatro anos lá. É uma área de extrema importância, com cerca de 23 referências de povos indígenas isolados. Mas é muito caótica, violenta, onde a invasão território ali era um pouco freada pela ação da frente etnoambiental. Houve ataques a tiros à base.

Tinha uma instabilidade social decorrente desse processo de invasão, que culminava no crescimento de doenças. Vi duas pessoas morrendo de tuberculose. Com uma vítima de hepatite B, tive de fazer a transferência do caixão com as minhas próprias mãos. Tinha muita malária também.

Isso me despertou para a área de saúde e decidi fazer medicina. Aí, encontrei em Brasília a oportunidade de fazer o curso na universidade pública, já com o intuito de voltar para a causa.

Fiz a colação de grau na Escola Superior de Ciências da Saúde, peguei meu CRM no dia seguinte e nesse mesmo dia fiz a inscrição no Mais Médicos. Cerca de cinco dias depois, preparei tudo o que eu tinha para preparar, peguei a mala e fui para Boa Vista (RR). Cheguei no começo de dezembro.

Eu sabia que a saúde indígena teria vaga, geralmente é a última a ser preenchida do Mais Médicos. Nos ianomâmis, todos os 16 médicos eram cubanos e foram embora.

Fiquei 15 dias bem intensos em Maturacá [perto do Pico da Neblina]. Foram cerca de 190 atendimentos. Fiz seis partos, pré-natal de algumas gestantes, atendi urgência e emergência, picada de cobra, corte, trauma por violência, alcoolismo.

Percebi que os problemas dos ianomâmis também estão voltados para a questão do alcoolismo, da desnutrição. Há muita pneumonia grave. Havia uma criança que, se estivesse na cidade, teria todas as indicações de gravidade para ser internada, mas tive de administrar lá.

Como a gente dorme lá, tem demanda a todo momento, de manhã, à tarde, à noite, de madrugada. Das 15 noites que passei em campo, fui acordada para atendimento em 10 noites.

A médica Ananda Conde Arquivo pessoal A médica Ananda Conde Contraí malária cerca de três dias antes de sair de área. Comecei a sentir os sintomas e, como eu já tinha contraído 12 vezes antes, já sabia que aquilo era malária. Vieram calafrio, vômito, tudo, mas a demanda continuava chegando. Só que capotei no segundo dia dos sintomas... No terceiro dia, eu ainda estava mal, mas atendi o dia inteiro vomitando, caindo, tendo diarreia, foi assim.

Foi um momento de desabar, pensava que nem conseguiria chegar à cidade porque tem o processo do avião, aí eu já pensava em tudo, em andar os 3,2 km até o pelotão de fronteira sob sol, levando a mochila para chegar ao avião, mas deu certo. Se sofri assim, imagina quem é de lá, que vive e convive com essa doença por muito tempo.

Essa foi a única vez que estive em área em dois meses de programa. Fui ficando desmotivada pelo cancelamento das viagens e por ficar repetindo a mesma capacitação, por várias vezes, em Boa Vista. Isso gerou uma insatisfação, por não estar fazendo o que me propus a fazer.

Outro ponto que me deixou muito insatisfeita foi a questão de que todas as minhas perguntas e questionamentos ao ministério nunca foram respondidos de maneira correta. Eu sempre ficava a par das coisas depois de muita pressão.

Além disso, havia a falta de pagamento da bolsa e da contribuição do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena). Em dois meses, recebi R$ 2.000, sendo que o custo de passagem, acomodação, e alimentação ultrapassaram esse valor. Tive de morar de favor na casa de uma amiga durante todo o mês de janeiro, o que me deixava apreensiva.

Ao final de dois meses, eu tinha R$ 100 na conta e ainda estava vivendo de favor. Foi quando saiu a notícia de que havia passado no concurso da Marinha, que não era a minha primeira opção. Mas, pelo menos, teria a segurança de que iria receber.

Meu medo com as mudanças e com a desestruturação do programa é a possibilidade da decadência da saúde indígena, ainda mais com a tendência à abertura das terras indígenas para minério e outras explorações, o que vai piorar consideravelmente a questão da integridade física e da saúde dos povos.

Uma das táticas de entrar para as Forças Armadas é poder da apoio à saúde a essas áreas. Utopicamente, seria criar uma proteção dentro de uma instituição tradicional.

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